domingo, 2 de fevereiro de 2020

Rui Nogar 2

Do amor pelas pedras

se fores capaz
de amar uma pedra

se conseguires amar uma pedra
dessas a que chamam calhaus
vulgaríssimas na sua textura
inconsequentes nas intenções
e que rolam no leito dos rios
desgastando-se até ao absurdo

uma pedra que julgamos inútil
sem outra beleza que não seja
a que só tu lhe podes emprestar

se fores capaz de amar essa pedra
ama-a
acarinha o seu silêncio
responde ao seu mutismo
iletrado irreflexo
ama essa pedra
mesmo que te chamem louco
e que se riam na cara que hasteaste
no mastro da tua irreverência

e se for preciso
se os não loucos
forem longe longe demais
nas suas vaias
seus arremedos insultuosos
atira-lhes então a pedra
atira-lhes então a pedra
com toda a força do teu amor
com todo o poder transfigurador
das tuas mais íntimas convicções
ah com a violência que te possui
nos momentos em que és capaz
de amar uma simples pedra
que a tua sensibilidade vitalizou

atira-lhes essa pedra
atinge-os em cheio
e esmaga
esmaga as conveniências
que a burguesia libidinou
para que os outros
um dia saibam
que o absurdo apenas mora
onde jamais será possível
florescer um amor qualquer

e tu
tu amarás essa vulgar pedra
quer eles queiram quer não
como se ama
apaixonadamente
a independência da nossa pátria
a liberdade de qualquer povo

"Silêncio Escancarado", Rui Nogar 

(Rui Nogar nasceu no dia 2 de Fevereiro de 1935. Morreu em 1993.)

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