In memoriam
Assumo aqueles tempos - os tempos já vividos,
despida de jaeres e falsos ouropéis,
e vestida c'os mantos de algodão tecidos,
saí pelos caminhos que não dão lauréis.
Assumo as mãos sem luvas, ásperas, marcadas,
quando, sem medir passos, saí de pés no chão,
caminhando por montes, vales e esplanadas,
por terras e por mares, por vão e por desvão.
Assumo o cansaço das longas caminhadas
e as pedras todas em que meus pés feri,
mas nem a dor nem as marcas foram reclamadas:
eram sinais dos males contra os quais argui.
Assumo a terra e o fruto, depois do florescer,
e o direito à vida, mesmo sob um fio,
ao arbítrio e à mercê dos donos do poder,
que negam o pão e a casa, os lagos e o rio.
Assumo cada rima do verso não falaz
e as frases todas nos muros, então, pintadas,
e os milhões de firmas em favor da Paz,
e as faixas abertas e aos ventos aladas.
Assumo as lutas todas, nesses tempos somadas,
ressuscitando os mortos, resgatando a memória,
o camponês em marcha e as fábricas paradas,
o passado e o presente - uma soma da história.
Ana Montenegro
(Ana Montenegro nasceu no dia 13 de Abril de 1915. Morreu em 2006.)
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