O Menino Jesus morreu sozinho. Tinha 84 anos.
Morreu o Menino Jesus. Tinha 84 anos. O corpo foi encontrado ontem,
rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolveu fechar-se ninguém sabe
dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa
do nome que lhes puseram nem da gramática que lhes deram, suspeitam que o
"óbito" terá ocorrido há pelo menos cinco dias. Azar do caraças: dois
dias a mais. Fatais. Ao terceiro dia safou-se o Outro.
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia
sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus
lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos? O que
apanhava, em Nevogilde, o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à
Baixa? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também
ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um
bocado extraordinário. Como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a
mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que
raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só
fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a
viver sozinho, há mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver
até ao fim. Ali mesmo, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade
do Porto, zona de ricos e indiferença.
Sou pobre, mas passo lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da
polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho
inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e
em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem
de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca
se abriu.
O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e
"rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho, como diz o meu amigo
Lopes. Já basta o que basta, morrer já é fodido que chegue. E tenho de
confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os
jornais de mais logo darão a idade certa do homem, porque às vezes falam
verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um
octogenário.
P.S. - Texto escrito e publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2012.
Um conto de Natal
Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil
escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.
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