segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Nuno Bragança 2

Cama de casal numa pensão algarvia. Acende-se o candeeiro na mesa de cabeceira e surge a mulher de pé com um roupão azul.
"O que é?", pergunta ele. Durante todo o dia anterior a essa noite fora a luta contra as ondas e os peixes, junto da Ponta de Sagres. O sono puxa por ele, segura-o como quem tenta evitar que ele entre no real quotidiano acordado.
"Estive no quarto do Bernard", diz a mulher. «Estive com ele, queria que tu soubesses isso imediatamente.»
Apesar do sono, ele revê a esplanada de Algés onde a mulher explicara a única relação possível entre eles. Revê também o dancing onde, quinze dias após essa explicação, ele fora ter com ela e lhe dissera sem palavras que aceitava. Nesta última ocasião os olhos de Zana tinham sofrido um transformar-se em outra muito nova coisa.
Agora ele senta-se na cama e fita o olhar dela. Põe-lhe uma mão no braço e de repente desata a rir. Ela sorri, na defensiva. Senta-se na borda da cama.
"De que é que estás a rir?" 

"Descobri o que és para mim."
Ela fica à espera e ele deixa-a esperar. Sai da cama e vai buscar um maço de cigarros. Dá um à Zana e acende-lho, sem tirar nenhum para ele.
Ela estende-se em cima da cama e ele, que estava nu, mete-se outra vez entre os lençóis.
"Às vezes", diz ele, "quando jogo o poker tenho a intuição de guardar uma só carta e pedir quatro. Mesmo que as cinco recebidas sejam uma hipótese de sequência ou
full-hand, ou isso."
"E então?"
Ele ri-se novamente.
"Tu és essa única carta que eu guardo. Contra toda a lógica do jogo."


"A Noite e o Riso", Nuno Bragança

(Nuno Bragança nasceu no dia 12 de Fevereiro de 1929. Morreu em 1985.)

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