Foto Hernâni Von Doellinger |
Deixei o cego a falar sozinho
Por Matosinhos anda um cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego ouve as notícias num transístor em voz alta e um destes dias, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imedita e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe debitando os números dos autocarros que se aproximavam da paragem, como se estivesse a "cantar o quino", tal qual se dizia em Fafe. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei... invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, querem saber?, não me arrependo.
A visita das duas cagonas
Que sou especialista na matéria, deixei-o bem explicado em "A verdade sobre as gaivotas", ensaio escrito e publicado pela primeira vez na edição do Tarrenego! de 10 de Junho de 2013 e que, em 2014, viria a valer-me o Prémio Príncipe das Astúrias de Investigação Científica e Estampilhas Fiscais relativo ao ano de 1971. Estudo-as há mais de um quarto de século, sei tudo sobre gaivotas. A rotina ou o hábito, consoante o que acontecer primeiro, dão nisto: criou-se-nos uma certa intimidade, e a bem dizer eu e elas já não passamos um sem as outras. Elas ainda não vêm comer-me à mão, isso é verdade, mas vêm cagar-me à varanda. E com a maior das descontracções e acrisolada acutilância. Temo até que uma certa e determinada gaivota esteja a abusar da confiança - e sei que é gaivota e não gaivoto porque a criatura trouxe ontem uma amiga, e as gajas é que vão aos pares arriar o calhau, isso também está provado. As duas cagonas visitaram-me ontem e borraram-me as cuecas. Entre sessenta e seis peças de roupa na seca do estendal, as badalhocas apontaram às minhas cuecas e ainda por cima à parte da frente, parecia um ovo estrelado muito bem passado, mas com merda em vez de ovo. Pontaria filha da puta. A minha mulher afina com estas coisas e eu... rio-me.
Mas o caso não é para rir. A gaivota anda a escangalhar-me o lar derivado à assiduidade com que ultimamente me caga em cima. A minha mulher começa a desconfiar, e agora já são duas gaivotas, mas eu defendo-me e digo: não é nada comigo, elas devem é estar na época de acagamento. Ou, como diz o povo, e com razão: quando caga uma gaivota, logo outra saralhota. O que é que eu posso fazer? Não fui eu que comecei...
P.S. - Por favor não me venham ensinar que eu deveria ter escrito "Não fui eu quem começou"...
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