Vitorino Carneiro da Cunha mandava no que era seu, na sua vida. As
feridas que lhe abriam no corpo nada queriam dizer. Não havia força que
pudesse com ele. Os parentes se riam de seus rompantes, de suas
franquezas. Eram todos uns pobres ignorantes, verdadeiros bichos que não
sabiam onde tinham as ventas. Quando parava no engenho, quando
conversava com um Manuel Gomes do Riachão, via que era melhor ser como
ele, homem sem um palmo de terra, mas sabendo que era capaz de viver
conforme os seus desejos. Todos tinham medo do governo, todos iam atrás
de José Paulino e de Quinca do Engenho Novo, como se fossem carneiros de
rebanho. Não possuía nada e se sentia como se fosse senhor do mundo. A
sua velha Adriana quisera abandoná-lo para correr atrás do filho.
Desistiu para ficar ali como uma pobre. Podia ter ido. Ele, Vitorino
Carneiro da Cunha, não precisava de ninguém para viver. Se lhe tomassem a
casa onde morava, armaria a sua rede por debaixo dum pé de pau. Não
temia a desgraça, não queria a riqueza. Lá se foram os três homens que
libertara, a quem dera toda sua ajuda. O tenente se enfurecera com o seu
poder. Nunca pensara que existisse um homem que fosse capaz de
enfrentá-lo como fizera. A sua letra, o papel que assinara com o seu
nome, dera com a força do miserável no chão. Era Vitorino Carneiro da
Cunha. Tudo podia fazer, e nada temia. Um dia tomaria conta do
município. E tudo faria para que aquele calcanhar-de-judas fosse mais
alguma coisa. Então Vitorino se via no dia do seu triunfo. Haveria muita
festa, haveria tocata de música, discurso do Dr. Samuel, e dança na
casa da Câmara. Viriam todos os chaleiras do Pilar falar com ele. Era o
chefe, era o mais homem da terra. E não teria as besteiras de José
Paulino, aquela tolerância para com sujeitos safados, que só queriam
comer no cocho da municipalidade. Com Vitorino Carneiro da Cunha não
haveria ladrões, fiscais de feira roubando o povo. Tudo andaria na
correta, na decência.
"Fogo Morto", José Lins do Rego
(José Lins do Rego nasceu no dia 3 de Junho de 1901. Morreu em 1957.)
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