terça-feira, 29 de abril de 2014

O meu barbeiro 2

O meu barbeiro atacou-me à traição. Falou-me de barcos. Tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda, de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa. Barcos. Nós sabíamos que tínhamos também isso em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo, escanhoador-mor a bordo da Sagres; e eu há 1.324 dias que sou contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado).
Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora em Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas oh palavras que me disseste! Leixões e cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto, para aí 80 durante este ano" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Azura que é irmão do Ventura, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation ou o Costa Pacifica", que ainda outro dia me passou à porta,

Foto Hernâni Von Doellinger

e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto, só não vê quem não quer", e que "Só nos primeiros seis meses de 2012 Leixões mais que duplicou (aumento de 118 por cento) o número de passageiros em relação ao período homólogo de 2011" - e eu disse mesmo período homólogo e, sim, expliquei a percentagem entre parênteses - e que "Um dia destes um filho da puta qualquer vai foder isto tudo, sentado numa secretária em Lisboa". Foi assim que eu falei. Mas em ponto grande.
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível". Falámos por quase 30 anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe. Já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei até casa.

À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso. (ver e ouvir)

(Texto escrito e publicado no dia 11 de Outubro de 2012. Mudo-lhe hoje a fotografia e faço uma alteraçãozinha de nada. Quem tiver vagar, pode ler mais do mesmo em O meu barbeiro.) 

6 comentários:

  1. Respostas
    1. E hehehehehehe para ti também. Acabo de fazer um cirúrgico acrescento ao texto. Lê outra vez, que pode ser que ainda gostes mais. Grande abraço.

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  2. Parabéns pela elegante campanha morgada. Obrigada pela partilha miculógica certeira. Se as reformas dos senhores o permitirem, talvez num futuro próximo os pesados dos mares passem a ser cruzeiros com um “tras” no lugar da “cruz”. Obrigada também pelo jantar natalício aclimatizado, por nos levar consigo ao circo, e pela visita ao barbeiro mais feliz do mundo – um dos seus melhores cortes! E se um desses gigantes com nomes convidativos lhe bater à porta, tenha cuidado, pense na saúde da sua varanda!
    “Tão longe vai o barquinho / Que até o mar continua...”
    Chapeau! A sua leitora atenta, M

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  3. Olá, grande Hernâni.
    Li este texto e apeteceu-me vir aqui meter um "hehehehe" e, qual o meu espanto, já tinha um "hehehehe". Ano e meio depois, continuo coerente! :-)
    Vá lá.
    Estes teus textos tem de ir para um livro. Dispõem bem!
    Grande abraço
    Nestes

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    1. Um grande hehehehehe também para ti. Já te disse que os livros são para escritores. Eu sou um modesto escrevedor, limito-me a contar umas larachas.
      Grande abraço. E grande abraço outra vez.

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