Foto Facebook Joe Biafra |
Uma noite, altas horas, saíamos da casa de má fama ali para os lados da Estação e resolvemos passear descalços pelas ruas desertas e geladas da cidade. Não sei de quem foi a peregrina ideia, mas, de tão tola, decerto foi minha. Confesso que não me lembro do que pretendíamos exactamente provar, mas gosto de pensar naquele momento insólito como um ritual de fraternidade, a celebração de uma amizade antiga e inoxidável que nos ligava desde miúdos, apesar da evidente diferença de "estatuto social" entre as nossas duas famílias. Frequentara-lhe a casa - "de rico". Dava-me o lanche, apresentou-me ao pão com manteiga e ao café com leite. Guiou-me pelos caminhos do rock. Ensinou-me os Queen, apesar das reservas. Emprestou-me "A Night at the Opera". Eu e a minha mãe deliciávamo-nos a ouvir "Bohemian Rhapsody" uma e outra vez, mais de vinte ou trinta vezes ao dia, no pequeno gira-discos francês que nos sobrara do meu pai. E ficou Queen até hoje, posto que non troppo.
Ali íamos, portanto. O Bertinho e eu. E, sim, era realmente liturgia, era festa. Glorificávamos a camaradagem desinteresseira e fiel. Éramos irmãos. Irmãos para toda a vida e depois. Ali íamos afinal iguais, ambos de pés descalços, com as botas e as meias pela mão, trocando memórias e partilhando o riso. Passávamos em frente à Câmara e parámos - éramos, penso-o agora, uma procissão, os dois. Se naquele precioso instante soltassem revoadas de pombas brancas por sobre as nossas cabeças e lançassem estrondosas girândolas de foguetes, creio que não nos espantaríamos...
Escandalosamente generoso e bom, leal e presente, chamava-me "meu rico menino", e eu gostava. Eu gostava, meu rico menino!
P.S. - Já agora: Bob Dylan, aprendi-o com o Best noite dentro, em sua casa, no Lombo. Iniciei-me com "Hurricane" e sandes, e talvez também cerveja. Hoje é Dia Mundial do Rock, e cá estamos.
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