quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Eram outros carnavais

Foto Hernâni Von Doellinger

Na minha terra, naquele tempo, festividades assim familiares e praticamente religiosas como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Exigiam pompa e circunstância. Em Fafe, pelo Carnaval, a grande tradição eram, se me dão licença, os peidos-engarrafados lançados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, alguns pares de estalos, encontrões, ameaças e correrias tolas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que não se podia mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje em dia será mais fino dizer. Peidos-engarrafados e pimenta. Exactamente, pimenta culinária sacudida dos camarotes para cima da plateia. Enquanto isso, o filme. De preferência uma coboiada, com muitos tiros e estrondosas cavalgadas, mas normalmente não, porque o "programador" tinha uma ideia morcona de divertimento e folia, em nome de Deus, Pátria e Família. Anos sessenta e setenta do século passado - Portugal era assim, regra geral. Um país a bem da Nação. E há por aí uns que tais que querem esta merda de volta.
Durante o resto do ano, no Cinema, só eram permitidos peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria, e para além disso tínhamos o Moisés, que isso então nem se fala! Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço.

No nosso Carnaval havia corso pelas ruas do centro da vila. E o rei momo era o Tónio da Legião, bonacheirão, afavelmente decilitrado, com coroa, manto e barbas a condizer, e só podia mesmo ser ele, no trono, lá do alto do carro alegórico, palácio ou castelo, olhando de lado para o mundo. Não me lembro se lhe deram rainha. O Tónio da Legião tinha uma queda tremenda para a amizade e para a cozinha, mas isso não vem hoje ao caso. E o Aristides Carteiro, que era um senhor e praticava humorismo nas horas vagas, abria o cortejo mascarado de ciclista, realmente um disfarce à altura do seu insuspeito porte atlético.

Pelo Entrudo, em Fafe, queimava-se o Pai das Orelheiras, velha tradição popular, de afirmação de rua, que andou perdida durante anos e que a Câmara Municipal resgatou em 2017, se não me engano. No nosso Santo Velho nós fazíamos a fogueira e queimávamos o figurão. Era o ponto alto do dia, que por acaso era à noite. As nossas mães diziam-nos para não brincarmos com o fogo, porque senão, quando fôssemos dormir, iríamos mijar na cama. Nós brincávamos na mesma e ao entrarmos em casa para dormir levávamos logo o ensaio do costume, mesmo antes de se saber se mijávamos ou não, e eu achava isso muito injusto e provavelmente ilegal.
Não me vou armar em Freud, mas naquele dia elas vestiam-se deles e eles vestiam-se delas. Era uma ocasião muito esperada. Uma oportunidade. Adultos, casados e afins, saíam para a rua aos pares com as roupas ao contrário e as caras tapadas com caretas de papelão compradas no Rates, que tinha tudo mesmo antes de terem sido inventadas as lojas que têm tudo, farmácias à parte e hoje em dia os talhos. Assim disfarçados e de boca calada, os pares de foliões metiam-se com os vizinhos, e o grande divertimento era tentar descobrir quem seriam os tratantes, desconfiando-se sempre deste ou daquela, tu a mim nunca me enganaste...
A coisa às vezes acabava à pancada, mas quê, era Carnaval e ninguém levava a mal. Além disso, estávamos em Fafe e tínhamos os peidos. Os peidos-engarrafados, quero dizer.

É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Fafe tinha belas tradições. Era tudo muito bonito e os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia.

2 comentários:

  1. E foi num Carnaval SEMPERIT que o AMOR começou :) Abraço

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    1. Exactamente, Miguel. Ainda ontem me lembrei disso, com gosto. Grande abraço!.

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