Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito
"sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos
para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama
maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e
nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Dramalhão. Mas tudo muito a bem da Nação. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto".
Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque
aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas
para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora má e ciumosa que fazia a
vida negra ao senhor viúvo e bom que gostava da menina tísica e bela que tomava conta dos quatro filhinhos dele, senhor viúvo e bom, a qual senhora má e ciumosa, todos concordávamos com a nossa mãe, era realmente "uma cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já
tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a
cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa
alimentação, que era assim que a coisa se rematava.
O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura autoria ou adaptação de Odette de Saint-Maurice, certamente as vozes de Jorge Alves,
Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e
Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do
"Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis".
Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos
dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores,
contentes pela
soirée e mortinhos por obedecer.
Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz. Radioso.
P.S. - Publicado originalmente no dia 25 de Julho de 2014, sob o título "Anjo da guarda, minha companhia".
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