sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Os cinemas também se abatem

O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema convencional levava pela mão o meu filho, ou vice-versa, para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e lamentavelmente era a versão portuguesa. 
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso nas legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudabilíssima cabina de projecção toda ela feita em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo derivado à falta de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "ma-gní-fi-cos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin, Roma, Manchester ou Bordéus, onde de momento estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Passos Manuel, Olímpia, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso, Chaplin, em Leça da Palmeira, e até o Vitória, na Circunvalação mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os velhos cinemas do Porto? Fecharam todos? A cadeado? Foram todos ao shopping e perderam-se? Eu sei que também não vou ao cinema há mais de um quarto de século, mas a culpa não é minha: é do meu filho, que cresceu.

(Dezembro de 1895 preparava-se para entregar a pasta a Janeiro de 1896 quando os irmãos Lumière apresentaram o cinematógrafo, que deu origem ao cinema actual - há quem acredite. Na verdade, porém, o cinematógrafo é considerado geralmente como um aperfeiçoamento feito pelos famosos manos franceses ao cinetoscópio do americano Thomas Edison, aliás inventado pelo seu engenheiro-chefe William Kennedy Laurie Dickson, em 1891, que isto na sétima arte anda meio mundo a enganar o outro como na vida real. Porém, outro porém: o cinematógrafo terá sido realmente inventado não pelos Lumière mas pelo também francês Léon Bouly. Bouly perdeu a patente, vá-se lá saber como e porquê, e os Lumière, toujour attentifs, deitaram-lhe as manápulas gulosas e registaram-na novamente e como deles. Muitos anos mais tarde, setenta do século passado, os Lumière, com aquela familiar queda para o negócio, abriram umas galerias muito jeitosas na portuense Rua de José Falcão, incluindo duas salas de cinema e tudo. Foi lá que o meu filho e eu vimos o "Rei Leão". Parece que a coisa vai agora abaixo. Está certo, estamos no Porto. Depois do Pavilhão Super Bock no Palácio, o Lumière dará à luz provavelmente as Galerias Asti Gancia. Tchim-tchim!...)

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Dezembro de 2019.

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