A parábola da caixa de correio
Foi uma quarta-feira quase corriqueira na minha caixa de correio. Na caixa de correio mesmo: naquela que já existia antes dos computadores e da internet terem sido inventados. Deixaram-me o desdobrável da Media Markt com um Stallone de papelone que é a cara chapada do Gene Simmons, um convite para a Feira do Mundo Rural, na Quinta da Bonjóia, as "7 vantagens" do "cartão de saúde" de uma rede nacional de lojas de óculos, com "especialidades médicas para toda a família", e o folheto como-quem-não-quer-a-coisa de uns desses novos compradores de "ouro, prata, jóias, novo, usado, em mau estado" que tomaram de assalto as nossas ruas e gavetas. Lixo.
O extraordinário é que alguém também lá meteu um exemplar da Voz da Verdade, publicação que até ontem me tinha passado completamente ao lado. E nem admira. Tanto quanto percebi, a Voz da Verdade é a voz do patriarcado de Lisboa e eu moro em Matosinhos. Matosinhos Sul, confesso, mas não creio que seja sul bastante para que já nos tivéssemos encontrado. Mais extraordinário ainda é que as notícias e o jornal têm a data de "domingo-20 de Novembro-2005".
O extraordinário é que alguém também lá meteu um exemplar da Voz da Verdade, publicação que até ontem me tinha passado completamente ao lado. E nem admira. Tanto quanto percebi, a Voz da Verdade é a voz do patriarcado de Lisboa e eu moro em Matosinhos. Matosinhos Sul, confesso, mas não creio que seja sul bastante para que já nos tivéssemos encontrado. Mais extraordinário ainda é que as notícias e o jornal têm a data de "domingo-20 de Novembro-2005".
Não sei que mensagem me estão a querer enviar. Nem quem. Nem porquê. Mas se é por causa de eu pensar e ter escrito que a Igreja (a Hierarquia, mais precisamente) anda muito devagar em relação ao Mundo e à História, esclareço já que não era a isto que me estava a referir. Não era às notícias. Embora esta história dos seis anos e meio de atraso até pudesse ser o princípio de uma excelente parábola para explicar o resto.
A morte chega pela caixa de correio
Um folheto que me foi metido na caixa do correio convida-me a escolher "um Plano Funerário adequado". Adequado a quê e para quem?, se conto estar morto quando for o meu funeral e quero lá saber de mordomias póstumas. Diz que há um "Plano Magno", praticamente como o gelado, um "Plano Essencial", que não faz bem nem mal, e um "Plano Popular", como o partido do Paulo Portas. Em qualquer dos casos, são garantidos "serviço personalizado a partir de 995 euros" e uma vasta "experiência", o que também deixa muito mais descansado o defunto mais exigente.
A caixa do correio mete-me medo. Não tanto pelas contas da luz, da água ou do condomínio (embora, rústico que continuo a ser, pagar condomínio ainda me faça uma certa confusão), mas mais pelos avisos das Finanças e do Tribunal. Ainda por cima é uma galdéria, a minha caixa do correio, escarrapacha-se a todos, até aos da pior espécie: aos que perguntam pelo meu ouro e eu não os conheço de lado nenhum, aos que me pedem o meu voto e não me conhecem de lado nenhum, aos que querem comprar a minha casa que eu não quero vender, aos que me querem vender uma casa que eu não quero comprar, aos que querem querem querem que eu troque de Deus, e agora até aos que me querem vender a minha morte como se soubessem alguma coisa da minha vida que eu não sei.
Vamos lá com calma. Eu sei que ninguém fica cá para a semente e que se alguém ficar sou eu (mas não é isto que interessa). Sei que provavelmente já por cá andei mais tempo do que ainda vou andar. Mas, francamente, a vida é tão boa e dá-me tantas consumições que tenho mais que fazer do que pensar na morte, do que organizar a minha morte. Quando eu morrer (se morrer), logo se verá. Eu é que já não. Essa é a herança que deixo de bom grado a quem me sobreviver. Se alguém houver.
A caixa do correio mete-me medo. Não tanto pelas contas da luz, da água ou do condomínio (embora, rústico que continuo a ser, pagar condomínio ainda me faça uma certa confusão), mas mais pelos avisos das Finanças e do Tribunal. Ainda por cima é uma galdéria, a minha caixa do correio, escarrapacha-se a todos, até aos da pior espécie: aos que perguntam pelo meu ouro e eu não os conheço de lado nenhum, aos que me pedem o meu voto e não me conhecem de lado nenhum, aos que querem comprar a minha casa que eu não quero vender, aos que me querem vender uma casa que eu não quero comprar, aos que querem querem querem que eu troque de Deus, e agora até aos que me querem vender a minha morte como se soubessem alguma coisa da minha vida que eu não sei.
Vamos lá com calma. Eu sei que ninguém fica cá para a semente e que se alguém ficar sou eu (mas não é isto que interessa). Sei que provavelmente já por cá andei mais tempo do que ainda vou andar. Mas, francamente, a vida é tão boa e dá-me tantas consumições que tenho mais que fazer do que pensar na morte, do que organizar a minha morte. Quando eu morrer (se morrer), logo se verá. Eu é que já não. Essa é a herança que deixo de bom grado a quem me sobreviver. Se alguém houver.
Por outro lado: a ofensiva cangalheira aguçou a minha curiosidade. Esse é o truque do marketing, mesmo do marketing de trazer por casa. Porta a porta. Admito que estou a pensar pedir um orçamento para a minha morte. Seduziu-me aquela coisa da "Medalha Impressão Digital", que não sei o que é mas deve ser muito bom para o morto. E também quero que me expliquem muito bem explicadinho o "Contrato de Funeral em Vida". Isso é legal? Funeral em vida?
Do preço do brushing ao Império dos Sentidos
Disseram-me que me faziam um brushing por quatro euros e meio. O panfleto metido na caixa do correio sugere que se trata de uma promoção para o "Mês do Amor", e eu acho que compreendo, embora seja um gajo antigo, do tempo em que nem havia Dia dos Namorados. Quatro euros e meio são novecentos escudos: sinceramente não sei se isto é uma pechincha ou marketing enganador, estou por fora do mercado, não ando por aí a apreçar o brushing, e ainda não decidi se gosto que mo façam em salding, mas percebo a ideia.
Ao contrário do que os falsos moralistas defendem, o brushing é uma coisa como outra qualquer. Faz parte. Por exemplo: muitas mulheres gostam e têm muita pena de não fazerem brushing por causa do atraso de vida dos seus maridos, que só admitem o brushing na cabeça das outras e gabam-se. São fariseus de carregar pela boca.
O panfleto oferece também "Nuances", por quinze euros e meio, "Extensões" por trinta euros e meio, e "Alisamento (tudo incluído)", por trinta e cinco euros e meio. Colocada assim a questão, não digo que não vá lá, embora precise de pedir um empréstimo ao banco. Trinta e cinco euros e meio são sete contos e quinhentos, mas, valha-me Deus, é "alisamento" e com "tudo incluído".
Oito euros e meio custa o "brushing+corte". Preços comparados, até parece barato, mas nesse é que não me apanham - vi uma vez num filme, chamava-se "O Império dos Sentidos". Dasse!...
Ao contrário do que os falsos moralistas defendem, o brushing é uma coisa como outra qualquer. Faz parte. Por exemplo: muitas mulheres gostam e têm muita pena de não fazerem brushing por causa do atraso de vida dos seus maridos, que só admitem o brushing na cabeça das outras e gabam-se. São fariseus de carregar pela boca.
O panfleto oferece também "Nuances", por quinze euros e meio, "Extensões" por trinta euros e meio, e "Alisamento (tudo incluído)", por trinta e cinco euros e meio. Colocada assim a questão, não digo que não vá lá, embora precise de pedir um empréstimo ao banco. Trinta e cinco euros e meio são sete contos e quinhentos, mas, valha-me Deus, é "alisamento" e com "tudo incluído".
Oito euros e meio custa o "brushing+corte". Preços comparados, até parece barato, mas nesse é que não me apanham - vi uma vez num filme, chamava-se "O Império dos Sentidos". Dasse!...
P.S. - Apontamentos publicados originalmente nos dias 31 de Maio e 7 Novembro de 2012 e 8 de Fevereiro de 2014, respectivamente. Hoje, 9 de Outubro, é Dia Mundial dos Correios. E o correio hoje em dia é isto: panfletos, publicidade, propaganda, encomendas, encomendas não encomendadas, assédio comercial, proselitismo político e religioso, vigarice...
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