terça-feira, 10 de março de 2020

Hoje, e só hoje, o sogro não paga

O homem que se esqueceu de dizer virilhas
Sou eu, passe a imodéstia. Por razões que não vêm ao caso, ultimamente tenho de usar muitas vezes a palavra virilhas. Ora acontece que, quando a quero dizer, ela - a palavra virilhas - não há maneira de me sair, geralmente varre-se-me da memória, e nem sequer posso alegar que a tinha na ponta da língua, porque também é um bocado chato. Nessas delicadas ocasiões vêm-me à cabeça a palavra narinas, sempre gostaria de saber porquê, a palavra tomates, é claro, e a palavra ínguas, sobretudo a palavra ínguas, que emerge do meu antigamente fafense e parece-me que anda por lá perto. Mas virilhas é que nada.
Fico consideravelmente encaralhado, e hoje por acaso não estou a inventar. Estou a ser o mais palavra de honra que há. Palavra de honra.
Que se segue: conto aos meus amigos a aflição deste estúpido bloqueio, e um diz-me - Quantos anos tens? Pois. Não ligues, pá, é normal, pá, é da idade, pá. Até tem piada. Comigo é a mesma merda, mas com a palavra pevides. Isso não é grave.
Não é grave, vírgula - isto já sou eu outra vez. Porque não se pode comparar virilhas com pevides. E pevides de quê? Pevides secas ou frescas? Nacionais ou importadas? Para aperitivo ou sementeira? Por outro lado, quando eu preciso da palavra virilhas é geralmente para a dizer a senhoras. E, na angustiante ausência da palavra, acabo por acudir-me das mãos e do gesto para conseguir explicar-me. Estão a ver onde me agarro? E acham isso bonito?

A urina é um bom negócio, por estranho que pareça
O meu sogro foi sempre um homem muito poupado. Não foi ele o inventor da reciclagem nem sequer sabe o que a palavra quer dizer, mas desde que sei dele que o vejo a dar uma segunda, uma terceira e até uma quarta oportunidade às coisas, às ferramentas, às alfaias, aos arames, às folhetas, aos ferrenchos, aos monos enjeitados, aos tijolos, aos paralelipípedos, aos nadas com que ia topando na rua. Levava-os para casa, adoptava-os. Os anexos da casa do meu sogro são hoje em dia um perigoso ferro-velho, ou, como eu costumo dizer sem abrir a boca, uma lixeira que ainda me há-de enterrar em merda até às orelhas. Mas adiante.
Volta não volta, quando despejo para um garrafão de plástico o saquinho colector da urina do meu sogro, ele, num raro instante de lucidez, pergunta-me com todo o interesse, e é das poucas vezes em que abre a boca para falar: - Ó Hernâni, o que é que você faz agora a isso, para que é que serve?
E ora bem: eu não posso mentir ao meu sogro, não lhe vou dizer que a sua própria urina vai servir para medicamento, para detergente, para fertilizante agrícola ou para combustível, essas tangas todas das notícias. Muito menos lhe posso revelar que desperdiço a urina pela sanita abaixo. Digo-lhe, portanto, a verdade. Puxo-o para cima, para que não embarre com os pés no fundo da cama, espreito-lhe a fralda a ver se é preciso, viro-o com cuidado, ajeito-lhe o tubo da algália, o pijama e as almofadas, aconchego-o sem apertar, dou-lhe um abraço apertado, recebo um sorriso infantil, e conto-lhe toda a verdade, a verdade nua e crua: - A sua urina, Sr. Carvalho, olhe bem para esta cor, olhe-me que categoria, a sua urina segue daqui directamente para engarrafar na cooperativa, e pode crer que é o melhor espadal que anda aí no mercado, a cinco euros e noventa e nove em promoção. A sua doença foi a nossa sorte. É só lucro, Sr. Carvalho, estamos ricos...

O meu sogro vai para a tropa
Depois de uma quinta-feira particularmente violenta, com doze horas na Urgência do Hospital de Santo António e chegada a casa cerca da uma da madrugada, a sexta-feira do meu sogro foi de alguma, lenta e não garantida recuperação. Mas nesta manhã de sábado ele estava provavelmente melhor, bem disposto, disponível para me ajudar ao seu conforto possível. Demos as voltas que foram precisas. Vim almoçar.
Tornei. À tarde, o meu sogro estava de trombas e a fazer de conta que dormia. Quando está zangado com a realidade que lhe passa pela cabeça, o meu sogro faz de conta que dorme, mas, esta parte tem piada, faz de conta muito mal. Disse-lhe, como de costume, "Sr. Carvalho, abra os olhos se faz favor, precisamos de tratar de si, eu sei que o Sr. Carvalho não está a dormir, e o Sr. Carvalho também sabe que não está a dormir, vamos lá, ajude-me".
Que se segue? Bato e rebato à porta do esquecimento, o meu sogro faz de conta que acorda de repente, mas continua a fazer de conta muito mal, o que me faz rir e obriga-me a dar-lhe um abraço e um beijo extra na careca. O meu sogro gosta que eu lhe dê beijos na careca e diz-me obrigado. Pergunto-lhe: - Ó Sr. Carvalho, então estava tão bem de manhã, porque é que está agora tão mal disposto? O meu sogro responde-me, a voz entaramelada e cara de mau: - Como é que eu posso estar bem disposto, se vou para a tropa?
Compreendi-o perfeitamente. Eu próprio ainda não recuperei de vez da minha passagem pelos Comandos, e mais era rapaz e razoavelmente desembaraçado. Imagino, portanto, a angústia do meu sogro, com o comboio a sair de Campanhã dali a um quarto de hora, obrigado a ir para a tropa aos 85 anos e sem sequer conseguir pôr pé fora da cama. Por isso, prometi-lhe solenemente: "Não se preocupe, Sr. Carvalho, no dia do juramento de bandeira lá estarei e levo-lhe um merendeiro como manda a sapatilha". Que sim.
Mais um abraço, e o resto da tarde correu com um belo sorriso nos lábios.

P.S. - No tempo de outras lucidezes, o meu sogro gostava de contar-me que foi "condutor auto" em Vendas Novas e que os anos de tropa foram os melhores da sua vida. Estes textos publiquei-os originalmente entre Fevereiro e Setembro de 2015. O Dia do Sogro é uma anedota mas é hoje - e por isso apeteceram-me outra vez. Por isso e por saudades.

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