Os Reis, já seremos tão poucos a lembrarmo-nos, cantavam-se de porta em porta. Na rua. Fazia um frio de rachar e éramos crianças lamentavelmente em roupa regrada e calçado malpropício, desagasalhadas da vida mas livres e felizes ao menos uma noite em cada ano. As palavras saíam-nos tremidas, vaporosas, condensadas, pedras de gelo às vezes, num bater de dentes que, regra geral, passava muito bem por acompanhamento a castanholas ou reco-reco (ou requerreque, em fafês), até parecia habilidoso arranjo musical feito de encomenda. Éramos portanto crianças, pobres, de porta em porta, na rua gelada, a abençoar a noite dos adultos, se possível burgueses e talvezes. Estão a ver o Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos, mas a generosidade morava no lado de fora.
Cantávamos:
"Do dia cinco prò seis,
nós vimos cantar os Reis..."
Cantávamos:
"Correi, ó pastores,
que a noite está bela,
vinde ver Jesus
na formosa estrela."
Cantávamos:
"Aqui estão os Reis à porta..."
Cantávamos:
"Olhei para o céu,
estava estrelado,
vi o Deus Menino
nas palhas deitado.
Nas palhas deitado,
nas palhas esquecido,
filho duma rosa,
dum cravo nascido."
Cantávamos:
"Pastorinhos, pumpum,
do deserto, pumpum,
vinde todos a Belém.
Pumpum.
Vinde ver, pumpum,
o Menino, pumpum,
que Nossa Senhora tem.
Pumpum."
Cantávamos:
"Quem diremos nós que viva
nas folhinhas do codesso,
viva o dono desta casa
que eu por nome não conheço."
E também cantávamos:
"Vinho na pipa,
couves na horta,
se não nos der nada,
cagamos na porta."
É. Estão a ver o Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos.
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