sábado, 3 de março de 2018

Marcelo Gama 2

Feia

Feia!... Como isso dói na tua alminha débil!
É nobre a coitadita, e muito a contraria
ser forçada a morar numa tal moradia...
Eis aí porque a vejo amargurada e flébil.

E é por seres assim que eu te quero assim tanto,
com este amor tão limpo e tão sem egoísmo,
pois logo a sujaria o meu sensualismo,
se animasse essa carne algum sopro de encanto.

Toda vez que me vem de tua alma perfeita
esse ar de doçura e pesar sossegado,
evocas-me o sabor que já tenho encontrado
em certos frutos sãos, mas de casca suspeita.

Água fresca bebida à beira de uma fonte,
em mau copo de folha, enferrujado e gasto...
Como deve bater penosamente casto,
sob o teu peito murcho, o coração insonte!

Borboleta que sai de um casulo rugoso...
teu sorriso não traz convites para o beijo:
antes pede perdão... manifesta o desejo
de que não se repare em teu corpo anguloso.

Sei que um dia choraste, assistindo a uma boda,
porque viste alguém rir do teu porte mesquinho.
Já chegaste a dizer, encontrando um ceguinho:
- Que bom se fosse cega a humanidade toda!

Entristeceste ao ver, numa revista de arte,
um "tipo de beleza"... E terias a palma
se fosse dado a alguém fotografar tua alma...
- não havia mulher tão linda em toda parte.

Dói-te se ouves falar, quando estás numa roda,
na formosura desta ou daquela mulher.
Vês em cada semblante um motejo qualquer...
e descreste, por fim, dos recursos da moda.

Imagino que horror deves ter aos espelhos!
E a crueldade da água em que lavas o rosto
há de forçosamente encher-te de desgosto,
repetindo que és feia e dando-te conselhos:

- Que não tenhas vaidade e não sejas faceira...
Parece-me que a ti um tal conselho é inútil,
pois tua alma sadia, abençoada e dúctil,
é uma flor que nasceu dentro de uma caveira.

"Via Sacra", Marcelo Gama

(Marcelo Gama nasceu no dia 3 de Março de 1878. Morreu em 1915.)

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