terça-feira, 6 de março de 2018

Almiro Caldeira 2

A casa fica ao fundo de um terreiro em que ciscam galinhas e patos-do-mato. Na parede caiada de branco, a porta com ombreiras azuis e nela a moça de joelhos faz renda numa almofada. O oficial ordena ao piquete que se detenha, avança alguns passos e para a contemplá-la. Ao surpreendê-lo, Maria José enrubesce, baixa os olhos, interrompe a tarefa. Ele aproxima-se, cumprimenta-a em português. Ela não responde e, de repente, ergue-se e desaparece no interior da casa. Algum tempo decorre antes que retorne escoltada pela mãe. Nanda ouve com ar altivo o oficial que, sem arrogância, expressa o propósito de falar a seu marido, cujo nome lê no imenso livro de capa preta, tudo dito num espanhol que se esforça em aportuguesar-se.
- Meu marido está na lavoura - informa seca e breve.
Enquanto o chefe do grupo despacha um homem armado para buscar o dono da casa, as duas fazem meia-volta e vão para dentro. Aquele e seus soldados permanecem à espera. Ele anda daqui para ali, espia pela porta, admira a renda em execução. De algum canto surge um cachorro a rosnar, um soldado dá-lhe um pontapés, ele corre ganiçando mas torna a provocar. Maria José mostra a cabeça à janela, ralha com o cão, que se aquieta. Nesse instante troca rápido olhar com o oficial.
Duda chega a passos lentos, mãos nos bolsos, olhos em fogo, cara fechada. Interpelado, reitera sua posição recusando-se mais uma vez a prestar vassalagem ao rei espanhol. O militar abranda a voz, argumenta paciente, insiste, porfia em convencê-lo, só desistindo disto ao perceber a inutilidade do seu empenho. Pede-lhe a certidão de propriedade. Duda nega que a tenha, replicando o capitão que se ele é proprietário deve ter documento.
- Documento eu tenho, mas perdi, isto é, não pude achar.

"Arca Açoriana", Almiro Caldeira

(Almiro Caldeira nasceu no dia 6 de Março de 1921. Morreu em 2007.)

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