segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Alfredo Margarido 2

O cadáver

No torvelinho da morte
os pássaros artificiais
perderam os olhos de vidro
e voo incomunicável.

Assim nasceram as elipses
no fundo do tédio,
onde, lúcido, fala o amor
aos navios naufragados.

Ergo a praça no sonho
e confundo-a com a casa,
entre árvores e jardins
no dorso do acaso.

Na simples casa de verão
onde os sentidos se chocam
ergo outro céu e outra casa
no aposento mais íngreme.

Passa a viagem a plantação
neste céu sem aves
deserto sem caravanas
onde o cadáver flameja e cresce,

Sobre este mar azulado tremula a alheada
a alheada insígnia solta e imensa
vibrante águia velha a abrir as asas
sobre este mar azulado onde o vento solta
ah! solta o difuso e transitório encantamento
das pálpebras tombadas junto do amor

sobre este mar azulado

Ensina-me a estar calmo a fronte lisa
riso insano do vencedor dos medos
acariciando o riso petrificado do anjo
ensina-me a estar calmo virgem que nua
vais para dentro do crime lançando a inquietação
do bendito clamor do rio libertado

ensina-me a estar calmo

Se outra vez apetecer conhecer a hora positiva
em que a corrente se projeta no crepúsculo
cruzando a palidez marmórea do perfil
se outra vez apetecer ir pela paisagem estival
onde descuidadas as codornizes gritam
a luz turva da mansão resplandescente

se outra vez apetecer

O meu crime está oculto na cidade falsa
esquivo entre coleantes alamedas de eterno
amplo gemido que se move ao redor
o meu crime está oculto perturbado de sons
e confuso é o inconcebido inda longínquo
inteiriçado cadáver isento da peleja

o meu crime está oculto

Renuncio ao julgamento para tornar de novo
pela janela alta a olhar a mendiga
voz que se alegra e veloz vai vela branca
pendendo sobre  momento de tensão
ah! renuncio ao julgamento trânsito
erguido para além do instante da dor

renuncio ao julgamento

O medo rijo e insular relâmpago
na compaixão estreita e desumana
estalando enfim no élitro palpitante
o medo rijo e insular sepultando
o horizonte tenebroso de hidras e de crimes
rompendo as paredes movediças como pesadelos

o medo rijo e insular.

Alfredo Margarido

(Alfredo Margarido nasceu no dia 5 de Fevereiro de 1928. Morreu em 2010.)

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