sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Crónicas de Matosinhos (para rasgar antes de ler) 10

Foto Hernâni Von Doellinger

Até para se ser pega é preciso ter sorte
A notícia espalhou-se como fogo em mato seco: um automobilista acabara de atropelar mortalmente uma pega, toda esmigalhadinha. Assassino! Juntaram-se imediatamente a Quercus, o PAN, a Protectora dos Animais, a Greenpeace, dois dirigentes dos Super Dragões e vários elementos do movimento cívico e espontâneo SOS Grilo Careca de Asa Redonda e Perna Curta, que está muito bem organizado para estas emergências. Rodearam o carro, arrancaram o automobilista cá para fora e encheram-no de carolos e caneladas, para ele aprender. Só não chegaram ao linchamento porque, regra geral, desconheciam a palavra, e os poucos que a conheciam de vista confundiam-na com lixamento e achavam que, para lixar o energúmeno, os carolos e as caneladas já estavam bem.
Acorreu o INEM. Vieram os bombeiros de Leixões, Matosinhos Leça, São Mamede de Infesta com fanfarra e os Sapadores do Porto, que andavam a fazer ginástica na praia. Apareceu a GNR. A autoridade aproveitou para também molhar a sopa, quer-se dizer, o automobilista caiu sozinho sobre duas secretárias e esbarrou-se sem ninguém lhe tocar num armário ali no meio da via, e, posto isto, foi intimado a explicar-se. O automobilista explicou-se. E convenceu. A Quercus, o PAN, a Protectora dos Animais, a Greenpeace, os dirigentes dos Super Dragões, os espontâneos do SOS Grilo Careca de Asa Redonda e Perna Curta, o INEM, os bombeiros a própria GNR fartaram-se de pedir desculpas ao homem e até lhe deram os parabéns. A fanfarra tocou "Obladi, obladá". Tudo não passara de um pequeno mal-entendido, erro de comunicação. Afinal o automobilista não tinha morto uma pega ou Pica pica melanotos, seria uma tragédia matar uma ave assim, tinha apenas atropelado mortalmente uma pega meretriz de beira de estrada, mulher solteira e mãe de três filhos, toda esmigalhadinha. São coisas que acontecem...

Follow me ou o fado do desgraçadinho
Foi em Setembro que te conheci, òs anos, quando o aeroporto de Pedras Rubras ainda nem se chamava aeroporto Praça Velásquez, o Victor Espadinha só tinha ido à "Cornélia" e nem suspeitávamos que viríamos morar aqui para Matosinhos, no rés-do-chão do barulho dos aviões. Não havia chopingues como agora, o FC Porto jogava na Madeira, com o Marétimo, e a gente, eu mais o Sarafim, íamos passar um domingo de categoria a ouvir o relato no tijolo do Sarafim e a esgravatar engate nas Departures e Arrivals ou no terraço das excursões de nariz para o ar a verem aterrar e levantar as aeronaves. Tu também lá ias com os parolos dos teus pais, que por acaso até me resultaram boas pessoas, e trazias a tua inseparável amiga Benilde, em quem o Sarafim se pôs numa fervurinha e como quem não quer a coisa. Adiante. Foi lá que te vi pela primeira vez em toda a tua excelsa Glória - Glória da minha terra, Glória de Sousa, Glória efémera -, no bar do aeroporto, que era só um e parecia um tasco. Foi tiro e queda: entrei caçador e saí caçado, apanhadinho de todo. Se calhar foi amor aquilo. Lembro-me como se fosse hoje: eras linda, num vestido justinho de chita às ramagens verdes estampadas, com umas sandálias rasas, pois, talvez estivesses de calças de ganga e botas de cano alto, mas toda coradinha e tão fresquinha. Tinhas uns olhos, uns olhos cor de, de que cor são os teus olhos, Glória? Eu bebia uma Super Bock e tu olhaste para mim mas eu não tive a certeza. Confirmaste-mo oito dias depois, eu sozinho, o Sarafim nas Antas e ver o jogo contra o Beira Mar e com a mão enfiada na parreca da Benilde, e eu para ali, aos caídos, abandonado como um cãozito sarnento, à espreita de um sinal, de um sorriso, perdoa-me a poesia. Deste-me ambos os dois, e confirmaste-mo. Mas nada de avanços, parte a parte, o respeito é muito bonito e os parolos dos teus pais, sem ofensa, gostavam muito, atenta e vigilantemente. Levava eu já perdida quase toda a primeira volta do campeonato, confortado pelos relatos do tijolo do Sarafim, "alô, Nuno!", quando te dignaste, muito dissimulada, num aceno de cabeça, dar-me sinal de Follow me. Alvorocei-me para vos levar as gasosas à mesa, a ti, minha riqueza, e aos lerdos dos teus pais, não desfazendo.
Perguntaste-me o meu nome e eu disse-te a verdade, mostrando-te o cartão de sócio do FC Porto: Joaquim Maria dos Passos Eleutério, isto é, Quitério. Admiraste-te: Joaquim Maria dos Passos Eleutério, isto é, Quitério, que nome tão esquisito? E eu expliquei: quer-se dizer, o meu pai era Eleutério, minha mãe era dos Passos, o padrinho Joaquim e a madrinha Maria. Resulta realmente um nome de merda, desculpa-me a expressão, e confesso que tentei esconder o enxovalho onomástico assinando Joaquim Eleutério, tinha esse direito, mas nem assim me convenci. Que se segue, agarrei no Joaquim e no Eleutério, espremi-os a ver o que davam, experimentei todas as combinações possíveis e imaginárias (Eleuquim, Joatério, Quinleutério, Eleujoa e assim sucessivamente e vice-versa), mas optei pela criação, inventei-me: aproveitei as sobras, casei-as e rebaptizei-me Quitério, que sempre é um nome assim mais coisa e tal. Mas chama-me Quim e beija-me na boca. Não, não ligues, é uma brincadeiras cá das minhas. Quê? O Sarafim e a Benilde, nunca mais os vi. Sim, fiquei com o tijolo do Sarafim, ainda dá, e o que é que essa merda interessa para a nossa conversa?...

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