Foto Hernâni Von Doellinger |
O cão, essa espécie de Facebook
O cão é, desde tempos imemoriais, uma das mais consistentes artimanhas do homem para a queca. Está cientificamente provado, todos os dias vejo disso.
Quem tem tesão compra um cão, diz o povo e com razão. Porque o animal - aflito, ziguezagueante, ganinte, de orelhas, rabo e tudo arrebitado -, parecendo embora que sai à rua em busca desesperada por parceira ou parceiro de quatro patas onde possa alivar o stresse, vem mas é tratar do cio do dono. Ou da dona. Por procuração.
Largado à frente, sem trela, "Vai, Corisco, vai, arranja-me uma gaja! Um gaja boa!", o cão é um batedor sexual para prazeres alheios. Evidentemente tem de se entender com o outro animal, mas isso é truque, pretexto para o dono chegar à dona, como todos sabemos, e depois eles, dona e dono, ou dono e dono, ou dona e dona, depois de conversarem resumida ou detalhadamente sobre raças e rações, que se entendam e se acamem. E muitas vezes entendem-se e acamam-se. Olhemos à nossa volta, sem falsos pudores: quantos namoros e casamentos, que nós tenhamos conhecimento ou desconfiemos, não foram intermediados por cães? Quantos engates e quantas pinocadas avulsas?!...
Passear o cão, é assim que se diz, mas querendo dizer outra coisa. Há até quem dê treino específico ao cão, para loiras ou morenas, gordas ou magras, inteligentes ou burras, e assim sucessivamente e vice-versa. É verdade, ele há cães especialistas. Cães de um certo tipo de caça.
O cão é, portanto, um alcoviteiro. Mas já foi mais, no tempo em que não havia Facebook. No tempo em que se mandava uma cadela ao espaço e a cadela chamava-se Laika. Hoje chamar-se-ia Like. É. As chamadas redes sociais na internet são agora, particularmente para casados, o principal móbil do engate, o menu do sexo à mão de semear, e esta nova realidade veio prejudicar sobremaneira os cães, cada vez mais substituídos, abandonados e abatidos, por aparentemente já não serem precisos.
Correndo o risco de fazer um título à Correio da Manhã, eu diria que o Facebook está a matar o cão. Aos poucos. E, todavia, acho que compreendo esta paulatina porém irreversível substituição do "animal doméstico" pela "aplicação social", porque a verdade é só uma: comprar ou adoptar um cão dá provavelmente mais trabalho e despesa do que criar um perfil no Facebook, sendo que o resultado final é o mesmo. Nestes tempos conturbados, o meu mais descarado elogio vai, pois, para as almas caridosas, afogueados adúlteros, que acumulam cão e Facebook, pelo sim e pelo não, e só temos de lhes agradecer, em nome dos animais.
Salvemos o cão! Porque ainda há algumas diferenças a considerar entre o cão e o Facebook - a não ser que Facebook seja o nome do cão. Para além de que o Facebook, o da internet, tem aquele perigo (há casos!) de a mulher andar a pôr os cornos ao marido e o marido andar a pôr os cornos à mulher - cada qual com o seu perfil secreto, mais ou menos falso e sobretudo "criativo" -, até ao dia em que se engatam como desconhecidos e depois se encontram para o que já sabemos. É então que marido e mulher reciprocamente infidelíssimos descobrem que realmente... foram feitos um para o outro.
Gosto da minha rua assim
O dia apresentou-se-me com cara de boa pessoa. Acordei à pala do relógio de sala do vizinho, que me madruga pela casa dentro sem pedir licença, e fui à varanda com vista para o mar se me puser de lado. Pontual, pendurado no sítio do costume, o Sol brilhava que era uma categoria. Navegando num céu perfeito, desanuviado, gaivotas de torna-viagem exibiam credenciais, cagando de alto. Nas funduras da rua eternamente em obras, desviando-se em ziguezagues milagrosos a cada nova vaga do merdoso ataque aéreo, um barulhento gangue de cães vadios tentava organizar-se para a sessão de boas-vindas ao novo elemento. Como é do conhecimento geral, os cãos organizam-se sobretudo cheirando o cu uns aos outros e ganindo, tal qual como na política. O novo elemento era um velho cão-polícia reformado da Brigada de Combate ao Narcotráfico e acabado de sair do canil municipal após prolongada cura de desintoxicação segundo o Modelo Minnesota.
Em respeito pelo ritual iniciático, a canzoada alçava a perna uma vez atrás da outra em pneus de estimação marcados de véspera, aliviando-se com evidente prazer dos excessos de uma noitada de copos e cadelas. Percebe-se: agora que lhes gamaram as árvores, é para aquilo que os cães precisam dos pneus dos automóveis, para a ancestral cerimónia. Uma espécie de baptismo mas ao contrário.
Mesmo por baixo do meu nariz, um casal de gatos gordos e somíticos barafustava contra um bando de jovens pardais por causa do esqueleto de um carapau encravado entre os paralelipípedos levantados da rua recém-requalificada. Não era arqueologia, era fome. Mandei um berro cá de cima e prevaleceu o bom senso: gatos e pardais resolveram-se enfim pela partilha, ordens minhas, a metade da cabeça para os pardais, que têm melhores dentes.
É assim que eu gosto da minha rua, madrugadora, límpida, cheia sem gente, barcos no quintal. Todos nos entendemos a estas horas temporãs - eu, os pardais, os gatos, as gaivotas, os barcos, ainda que espanhóis, os cães, mesmo que ex-polícias. Olho-nos de fora de mim e vejo um comovente quadro de harmonia irracional. E o mar de Matosinhos fede como não há memória. Que mais se pode desejar como alento matinal?...
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