Foto Hernâni Von Doellinger |
Podia acontecer
A madama tinha um cão ao colo e, entre as pernas mas ao nível dos sapatos de tacão altíssimo, uma bolsa com rede e design. Era uma madama jovem, bela e produzida, esperável ao volante de um Porsche Cayenne e a lamber o telemóvel, e não ali, no banco do autocarro e a ser lambida pelo cão. O cão era a condizer: sucinto, peludo, de marca, transpirando pedigree por todos os poros. Uma fofura.
Sentia-se-lhes um orgulho mútuo, percebia-se uma relação muito bonita. Que ternura! A madama babada beijava o lingrinhas barbudo e o lingrinhas barbudo e babado beijava a madama babada. Beijavam-se na boca. Lambiam-se, se não me engano. A madama falava xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã e o xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã não dizia nada mas apenas por ser cão e por gostar de festas nos genitais e não querer interromper a coisa. Realmente só lhe faltava falar, ao cão, como muito bem observou o autocarro em coro, era o 500, e até eu me comovi, eu que, como sabem, mantenho um ancestral e desagradável contencioso com os canídeos de uma forma geral, e cuido que a culpa não é minha. A cena deu-me também um bocado de tesão.
A madama apeou-se na paragem de Matosinhos Praia, sempre com o cão ao colo, sempre xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã. Com a mão de vago, pousou no passeio a bolsa com rede e design, abriu-a e retirou de lá de dentro um bebé de meses. Menino, vestia azul. Também era giro.
O motorista da STCP que era um número de circo
O motorista do 500 era um três-em-um: conduzia, falava ao telemóvel e comia uma sandes - tudo ao mesmo tempo. O que é extraordinário, praticamente número de circo. Eu, que até me tenho em boa conta, se como, não consigo falar ao telemóvel, e, se falo ao telemóvel, não consigo comer. Para além disso, não sei conduzir nem um carrinho de linhas, quanto mais um dúplex de três rodados. O 500 é, com efeito, o autocarro da STCP que faz bissextamente a ligação do Porto a Matosinhos (e vice-versa) pela marginal, e note-se que digo bissextamente porque, numa mesma manhã, um 500 passa pela tabela de Inverno, outro 500 passa pela tabela de Verão, e pelo meio há pelo menos dois ou três 500 que não passam por tabela nenhuma, pura e simplesmente não passam, o que significa mais de uma hora à espera e é para quem quer. Os horários da STCP afixados nas paragens e publicitados na Internet são uma anedota, e a boa disposição faz falta nos tempos que correm. Está certo.
Por definição, os motoristas da STCP conduzem e falam ao telemóvel. Ui, o que eles falam ao telemóvel! E quando raramente relapsam e não falam ao telemóvel, é porque estão à conversa com um estorvador profissional, amigo da corda, geralmente mirone de praia, que se lhes planta ao lado, atravancando a entrada dos passageiros e distraindo a condução. E blá blá, blá blá, blá blá, lá vão ambos todos contentes nos seus ofícios, gajas acima e gajas abaixo, como se não fosse nada com eles.
O meu motorista três-em-um conduzia, portanto, um 500 de rés-do-chão e 1.º andar - a bem dizer, um mil -, o que é ainda mais extraordinário. E, verdade seja dita, sem o estorvador da ordem, falava simplesmente ao telemóvel. E almoçava, o que até se compreende, uma vez que já eram quase duas da tarde.
Os trabalhadores da STCP entram assiduamente em greve e então não há 500 para ninguém. Quer-se dizer que nesses dias ando duas horas a pé, nada de grave e até me faz bem. Que fique registado, eu sou pelas greves. No meu tempo de grevista, grevei com reconhecida competência e indesmentível pertinácia - quem me conhece não me deixa mentir. Quantas vezes me disseram, uns e outros, mais outros do que uns: é pá, camarada, nunca vimos ninguém grevar com tanta categoria como tu! Eu, modesto, limitava-me a dar um jeito ao guarda-sol e a pedir mais um fininho, se faz favor. E ainda não tínhamos descoberto a comodidade das greves às segundas e sextas-feiras.
Confesso que tenho uma certa simpatia pelos motoristas da STCP e pelas suas greves tão dia sim, dia não. O que eles querem, o que eles querem mesmo, é que os deixem ficar no quentinho do "serviço público", porque trabalhar para o privado fia mais fino. Mas, à boleia da única verdadeira "reivindicação", fica-se também a saber que a STCP precisa de mais 150 motoristas e não os mete, que há motoristas que trabalham catorze horas por dia (daí a sandes, depreendo eu) e que realmente os utentes andam a levar um grandessíssimo baile.
Voltando ao meu motorista três-em-um, o tal que conduzia, falava ao telemóvel e comia uma sandes - tudo ao mesmo tempo. Poderão dizer-me que é homem pouco cuidadoso, ainda por cima ao volante de uma bisarma daquele tamanho. Não é essa, porém, a minha opinião. Pelo contrário. Dei-me ao trabalho de reparar: a sandes era de pão integral e tinha folhinha de alface...
P.S. - O episódio do motorista, do telemóvel e da sandes é verdadeiro. Mas não se passou no autocarro da fotografia, nem naquele dia, nem naquele sítio alternativo. O 500 do retrato é apenas um por exemplo.
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