sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

João de Araújo Correia 2

O Verão, em Trás-os-Montes, é sinónimo de inferno. Cá no Douro porém, no fundo dos caldeirões que apuram o vinho, o inferno refina. Pêro Botelho redobra de malícia. Ferve e referve coisas e pessoas.
Com este calor, o fígado entumece, o apetite foge, o cérebro dormita. Parece que o mundo das ideias, das lembranças, o divertido mundo do conhecimento, parou dentro do crânio. Não se lê uma linha, não se escreve palavra nem cogita assunto. Golilhas de ferro em brasa, movidas por diabinhos, algemam os pulsos.
Toda a gente se sente morrer banhada em suor. (…)
Onde se devia estar bem, nesta hora enjoativa, era em solar ou convento de paredes grossas, com árvores em volta e água a humedecer a terra sem quebranto. Quem dera uma árvore nestes montes, onde a vinha mirra! Seria disputada a soco pelos escalorados. Eles põem-se nus, mas as moscas ferram-lhes, fazendo chagas. Bebem água, sorvem cerveja, mas a barriga incha-lhes, o olhar rola-lhes mortiço.
Nos campos, ceifa-se ao luar. Na vinha, só de manhã se redra. De tarde, o homem da lavoura apenas se aventura em horta onde haja poço. À noite, caça o pulguedo até cair exausto. (…)
Nestas vilórias, à noite, nas arboretas municipais, não bole folha. Debaixo delas, em inóspitos bancos, homens e senhoras, doentes de calor, parece que se odeiam. Não conversam nem riem. Fazem horas.
O Douro é uma estufa. Dentro dela, a vide é flor exigente. Dá uma gota de vinho em troca de um suor ou uma vida. Quem escorropicha no fundo de um cristal, essa gota de néctar, celebra um sacrifício.


"Três Meses de Inferno", João de Araújo Correia 

(João de Araújo Correia nasceu no dia 1 de Janeiro de 1899. Morreu em 1985.)

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