Desintegro-me. Custou-me sempre participar do colectivo. Apoquenta-me a minha narrativa, sobretudo pela veracidade mordaz de que se revestem todos os meus actos. Tento disfarçar com imagens. Puxo as sarjetas da alma, guindastro pelas roldanas do meu vaivém um peso de sentimentos misturados com banalidades do dia a dia. Não vou à praça fazer compras. Recuso-me terminantemente a tomar uma laranjada, ou um eléctrico. Deixo que as pessoas olhem para mim, de caras, com a minha imagem espantada, bem visível à vista desarmada. Mesmo na loja que na Baixa me queria vender um binóculo por tuta-e-meia, eu recusei em absoluto essa alavanca trancada no rosto. Fui sempre pelo que é natural, tanto em animais, como na cama. A memória recorda factos, é parte de uma história que se ensinava no século XIX e ainda hoje alegra os meninos do Liceu. Lembro futuros melhores, de fava-rica, camisas arregaçadas, terminações com o mesmo dinheiro de muitas sortes grandes, banhos em pelote, mulheres de tremer os alicerces, terramotos que correm cheios de saudade, prenhes de desejos, satisfações imberbes que nunca se cumprem. Arrepio-me, agora, já, sem saber bem porquê, uma viagem que sobe e desce pela espinha dorsal. Olho para mim. Uma radiografia perfeita, bem chapada. Tudo foge ao meu controle. Fico destituído de mim, como desmobilizado de uma guerra em que não tomei parte.
"O Outro Que Era Eu", Ruben A.
(Ruben A. nasceu no dia 26 de Maio de 1920. Morreu em 1975.)
Sem comentários:
Enviar um comentário