Sempre acontecia assim: Zé Orocó sorria porque acabava de lembrar que a vida era pai d'égua de bonita.
Foi por isso que o remo deu um chape-chape tão suave que a água do rio quase virou música e a canoa deslizou macia como se voasse.
O Sol morno e sonolento escondia-se nas nuvens e começava a descer rebocando a tarde. Jaburu, na praia branca do rio, conversava uma eternidade de silêncio, caminhando de lá para cá e, voltando as pernas longas, retornava ao ponto de partida. Bicho tão feio e desengonçado ao caminhar, no voo não havia ninguém que lhe tivesse a elegância.
Veio um vento friinho, friinho, que lhe arrepiou as costas sem camisa. Mas até aquilo era bom. Anunciava a grandeza do frio do verão.
Zé Orocó sorriu mais largo. Pensava nas noites em voltada fogueira, nas línguas vermelhas das chamas correndo a lenha seca; no mundão de estrelas que estavam ali bem perto; em escutar a conversa de gente; no corpo cansado do ardor do sol, dormindo encolhido nas cobertas fininhas, tentando tapear o frio que encompridava a noite.
Mês de abril 'tava no fim. Chuva grande, só no outro ano. Talvez ainda caíssem umas pingadas ligeiras. Talvez uma chuva de um dia ainda aparecesse, mas mais que isso era improvável.
Fitou o rio que, de subida, só homem macho pra burro se aventurava, enfiando, quando dava pé, a zinga comprida que calejava a mão ou o remo que zunia de tanta força, fazendo o coração baforar sangue, pulando. Era cada estirão de dar medo. A luz do dia suspendia as árvores da selva, ao longe, como se toda a plantação estivesse no céu em vez de estar na terra.
O vento frio, de novo. Deu um empurrão na zinga e comentou com Deus:
- Boa tarde, verão bonito, que vem chegando com tanta ternura.
E como Deus só sorrisse, sem responder, continuou remando.
"Rosinha, Minha Canoa", José Mauro de Vasconcelos
(José Mauro de Vasconcelos nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1920. Morreu em 1980.)
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