Desde que virou cunhada de papai, Júlia anda tomando ares de importância: "Sou a cunhada de doutor Afrânio", espalha de boca cheia. Doutor Afrânio! Ora veja! Papai nem é doutor... Ele tem porte de doutor, pose de doutor, anel de doutor - que herdou do pai, farmacêutico -, mas não é doutor. Papai desejava estudar direito, sua vocação era advocacia, mas os estudos na faculdade eram caros demais para a bolsa de vovó, viúva, três filhos para formar, tendo que arcar sozinha com todas as despesas... Papai não vira outro jeito senão desistir da vocação e seguir um curso técnico de contabilidade, menos dispendioso e mais rápido, que lhe facilitasse ganhar logo seu dinheiro, embora não lhe desse satisfação nem o título sonhado. Papai tem letra linda, todo mundo diz, mas não é doutor. Ele deve gostar quando o tratam de doutor, pois não reclama, fica firme, recebe com prazer o título.
Mesmo não sendo doutor, além da caligrafia linda, papai é muito culto. Em sua estante pode-se encontrar todo tipo de almanaques: o Almanaque do Pensamento, segundo ele o melhor de todos, o Astronômico, Náutico, o Almanaque da Saúde da Mulher e muitos outros de laboratórios farmacêuticos. Pergunte-se o que se quiser ao doutor Afrânio sobre constelações, animais, vales e montanhas, ele sabe, tem resposta a tudo, na ponta da língua. Sabe geografia e história universal, é a pessoa mais culta que conheço.
Estudando almanaques, papai aprende o que deve e, às vezes, até o que não deve. Descobriu recentemente num almanaque que o alho cru é um santo remédio, rejuvenesce, faz curas milagrosas.
Entusiasmado, resolveu adotar o santo remédio, faz-lhe a propaganda, tenta impingi-lo a parentes e amigos. Mete dentes de alho, já descascados, no bolso e sai por aí, cumprindo sua missão humanitária.
"Crônica de Uma Namorada", Zélia Gattai
(Zélia Gattai nasceu no dia 2 de Julho de 1916. Morreu em 2008.)
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