domingo, 7 de dezembro de 2025

Timor à vista

A menina dos altifalantes avisa-me, numa voz metálica e sincopada, de andróide: "Próxima paragem, Timor." Sobressalto-me, de repente o coração enche-se-me de egrégios avós, de coragem que nunca tive, às armas às armas, digo, maubere people, canto, emociono-me de mim, Ai Timor, os olhos afogados em lágrimas, olho pela vigia, o mar calmo e eu agoniado, faço as últimas orações, seja o que Deus quiser, dou o peito às balas... e dou também fé que estou no 500, o autocarro da STCP que faz a ligação entre o Mercado de Matosinhos e a portuense Praça da Liberdade pela marginal, viceversando. Para quem vai, Timor fica entre as paragens do Castelo do Queijo e do Homem do Leme, Avenida Montevideu, Foz, e antes assim.

P.S. - Hoje é Dia de Timor-Leste.

Os pés bem assentes na terra

Ele tinha um medo terrível de andar de avião. Porque não sabia nadar. E se o aparelho caísse ao mar?...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Aviação Civil.

sábado, 6 de dezembro de 2025

O papel e o papelão

O (des)interesseiro
- Eu quero é que o dinheiro se foda! - dizia. Acrescentando: - E que procrie, evidentemente...

O gestor de projectos instalou-se em Fafe, vindo ninguém sabe donde, e foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de cartão canelado e pós de perlimpimpim, exactamente no sítio onde fora outrora a velha Fábrica do Papelão, no rio Ferro, em Cavadas, a seguir ao extinto monte de Castelhão, entre as pontes de Ranha e de São José, investimento para cima de diversos milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez 24 ou 25, ainda não sabia ao certo, isto tudo, bem entendido, antes da chegada em barda das grandes superfícies, que entretanto tomaram conta do lugar. O senhor do banco pediu-lhe a identificação de gestor de projectos, e o gestor de projectos respondeu prontamente: "Não tenho. Ainda estou a começar. Este é o meu primeiro negócio, mas toco muito bem ocarina". O senhor do banco tomou devida nota e observou, arguto e rindo: "Fábrica de cartão canelado, nesta altura do ano? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro que aqui se pratica. Em todo o caso, se eu fosse mesmo vigarista, e dos antigos, como vosselência fez questão de caracterizar, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco e não uma fábrica", ripostou o gestor de projectos, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

(Versão revista, actualizada e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

O banheiro e a banheira

Foto Hernâni Von Doellinger

Havia o banheiro. Que era um senhor geralmente concessionário de um pedaço de praia camarária e que, pelo Verão, na chamada época balnear, alugava barracas e cadeiras, e disso fazia modo de vida para o ano inteiro. É só ir à Póvoa de Varzim, à nossa Póvoa, a Póvoa que alimentamos e que nos chama "parolos", aos fafenses. Havia o banheiro. Que era um senhor robusto de calças arregaçadas que se embrulhava numa vestimenta de oleado de cor mais ou menos berrante, velho salva-vidas que levava ao banho de mar, a bem ou a mal, adultos enfermos e sem poder de locomoção ou crianças renitentes e ganintes, como no meu tempo de miúdo, na Colónia Balnear Doutor Oliveira Salazar, na Gala, Figueira da Foz, para pobres registados e sem piolhos, após vistoria relâmpago no Posto Médico de Fafe, ou ainda hoje em dia no ritual do banho santo de São Bartolomeu do Mar, Esposende. Havia o banheiro. Que era a retrete, a sentina, a latrina, a privada, o WC, a casa de banho, a casinha, o lavatório, a tina, o lavabo, o sanitário, a sanita, o toalete, sobretudo no Brasil. Portanto havia o banheiro. E havia a banheira. A banheira era a mulher do banheiro.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia da Banheira. Cuidado com o sabonete...

Um dia em cheio

É jovem e dinâmico. Divide a vida entre o campo e o ginásio. Chega 5 de Dezembro e ele celebra o seu próprio dia, feriado pessoal e intransmissível, dia santo e nem por isso. Dia Internacional do Ninja e Dia Mundial do Solo. Assinalando a dupla efeméride num satisfatório dois-em-um, todos os anos, no dia de hoje, ele anda à batatada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Solo e Dia Internacional do Ninja.

Mais vale solo...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Quando o homem-estátua abriu a boca

As pombinhas da catrina
As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas da fama não se livram...

Porto, vésperas de mais um Natal. Ao fim de 35 anos de inabalável serviço na ex-libríssima Praça da Liberdade, o homem-estátua chamou o fiscal da Câmara num pst! muito bem disfarçado. Veio também um polícia municipal. "Ó colegas, isto aqui já não dá nada. Até o cavalo de D. Pedro IV leva mais do que eu ao fim do dia. Estou no ir, se calhar para Fafe, vou fazer de pedregulho no Largo ou talvez de árvore. Ou então vou para a Suíça trabalhar como boneco de neve ou vaca da Milka, que estamos na época. Lembrais-vos do Dr. Miguel Relvas? Sabíeis que sempre que os portugueses emigram têm uma visão universalista que lhes traz sucesso?", disse o homem-estátua ao fiscal camarário e ao polícia municipal, por entre dentes e sem perder a pose. Era efectivamente um homem-estátua aprumado, muito profissional e filósofo amiúde. "Além disso, estou farto de que me caguem em cima", acrescentou, descendo finalmente do banco de cozinha e arrumando os tarecos e o velho reumatismo em dois sacos plásticos do Pingo Doce do tempo em que os sacos plásticos eram de borla. "As pombas?", perguntou o fiscal da Câmara, que era um bocadinho lerdo de entendimento, porém presto para as multas. "O quê?", perguntou o homem-estátua, que já nem se lembrava do que tinha acabado de dizer. "Cagam-lhe em cima, as pombas?", interveio o polícia municipal, espaçando as sílabas e restabelecendo a ordem. "Os pombos. Os do Governo, os da Assembleia, os da Justiça, os da Saúde, os da TAP, os da CP, os da EDP, os dos Correios, os da Caixa, os da Igreja, os do Espírito Santo, esses pombos todos de gravata ou cabeção mas sem anilha, esses cagões", respondeu o homem-estátua, escarafunchando os bolsos profundos à procura dos apontamentos com a lista completa, nome a nome, a começar em Aníbal e a acabar em Ventura, à procura da lista imensa e do manguito do Bordalo, que também estava para ali metido, há que tempos há espera. Tinham sido realmente muitos anos de gesto suspenso e bico calado.

(Versão revista, actualizada e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)