terça-feira, 19 de agosto de 2025

Monólogo do barbeiro

Foto Hernâni Von Doellinger

"Cabeleireiro masculino". Olho para o reclame e fico sempre naquela. Mas quê, será masculino porque é homem? Ou será masculino porque atende homens, isto é, barbeiro? E se o cabeleireiro masculino for mulher, não deveria dizer-se, sem ofensa, cabeleireira masculina? E se o cabeleireiro for feminino, o que é que temos a ver com isso? E se o barbeiro for mulher, não vamos mais longe, porque é que não é barbeira? E em caso de indefinição ou escolha múltipla, coisa absolutamente natural, poderá ser, por exemplo, barbeire? Cabeleireire? São problemas assim que de facto me afligem - quero lá saber de outras guerras.

Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os testículos, espreito-me aos espelhos, que realmente me favorecem, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um aceno de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos!
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, Senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O Senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
Ai de quem se atreva a meter conversa com o seu barbeiro, nem sabe no que se está a meter! Porque os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Pasmados, à volta do cliente, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas, dizem que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível", "A sério?", "A sério?", "É o país que temos", "Pois, hoje em dia", "Tem toda a razão", "Senhoreee...", "Senhoreee...". O nosso barbeiro nunca sabe o nosso nome, somos todos "Senhoreee..."
O meu barbeiro, treinei-o à minha feição. Nem um pio! Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que comigo não vale a pena, até porque não me consta que se possa descortar cabelo. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio novamente sem dizer "Ugh!", que ele não estranha. Aliás, o meu barbeiro ficou bastante admirado quando, uma vez, eu lhe disse que não sou mudo.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, tácito, a esta combinação tão antiga e cómoda, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de quarenta anos, quando cheguei de Fafe, habituado a barbeiros para homens de barba rija, e que hoje em dia, afinal, também já não passam de suspeitíssimos "salões de beleza"...

Ora bem. Não sei o que deu ao meu barbeiro, que, sem mais nem menos, resolveu falar. Comigo! E eu, de boca fechada e dentes cerrados, perante semelhante fenómeno ou talvez traição - falta de respeito, pelo menos -, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre, mesmo que a gente não lhes responda. Como os dentistas. E o meu barbeiro, parecia possuído, estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelo Ventura, que vai meter estes mamões todos na ordem. O que até me veio a calhar para eu continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público nem chamar nomes a ausentes. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer: Luís Filipe Vieira, gangues, facadas, polícia, e eu, nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump, agora é que o vão apanhar. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E o funeral da rainha, que foi uma categoria? E eu a pensar que o real evento, se foi mesmo uma categoria, esteve certamente a cargo do nosso Baptista de Antime, mas moita-carrasco! E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que mandou a Teresa Guilherme para a prateleira. E a Cristina Ferreira, que foi de fim-de-semana a Sevilha. E a Fátima Lopes que deslumbrou em biquíni. E o Malato que diz que dá para os lados todos como as circunferências. E a Sónia Araújo, e o Jorge Gabriel, e o João Baião. Também não. Nem assim. Mantive-me irredutível, irrevogável, calado como uma porta, mudo como um herói.
O meu barbeiro pareceu desistir. Silenciou-se, magoado. E assim esteve, pareceu-me, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro, pôs a cara mais sofrida do mundo, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro: - E este tempo, hã?! Isto está...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e ligámos um ao outro, à tarde, para esclarecermos dois ou três pontos.

É claro que eu não vou ao barbeiro há mais de dez anos, derivado à crise. Se deixei de ir ao cardiologista, para poupar dinheiro, por que razão havia de continuar a ir ao barbeiro? É a Mi quem me corta o cabelo e a barba cá em casa, na varanda sem marquise que temos mesmo em frente ao mar, se nos pusermos de lado. Mas eu e o meu barbeiro éramos exactamente assim. Praticamente assim. Entretanto a minha mulher aprendeu na Internet a realizar cateterismos, e cá nos vamos arranjando.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Canadairs e engolidores de fogo

Com os Kamov parados, os Canadairs avariados, os Fire Boss atrasados e os "operacionais" no terreno esgotados, o Governo chamou ao teatro de operações todos os engolidores de fogo disponíveis e os ilusionistas do costume. Enfim, assunto resolvido.

Nómadas analógicos

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 17 de agosto de 2025

As grandes decisões tomam-se em cuecas

No dia em que decidiu finalmente atirar-se de cabeça na piscina vazia, a piscina estava cheia, azar do caraças. Ficou como um pito! Mudou de roupa e resolveu dali para a frente: as grandes decisões, as decisões definitivas, devem ser tomadas em cuecas.

P.S. - Hoje é Dia do Gato Preto.

Em dois sítios

Ele era um tipo manifestamente azarado. Caiu e partiu o braço em dois sítios: mais precisamente em Mirandela, há coisa de dez anos, e no Sabugal, fará amanhã quinze dias.

P.S. - Hoje é Dia do Gato Preto.

Desnecessidade

A frase diz: é preciso ter azar! E eu acho que não. Pelo contrário, passávamos bem sem ele.

P.S. - Hoje é Dia do Gato Preto.

sábado, 16 de agosto de 2025

O Animal e os animais

Foto Hernâni Von Doellinger

O cidadão Fernando Alves. O Animal, chamam-lhe, ou o Emplastro, que, segundo o Expresso em 2008, foi contratado pelas agências turísticas para acompanhar os passeios pelo menos bêbados de mais de 15 mil finalistas universitários portugueses a Espanha. Quinze mil doutores, em dinheiro de hoje em dia, e devem estar todos a mandar no país. O extraordinário Emplastro que até foi ao Herman SIC e teve direito a dentes novos, dados por um desinteresseiro benemérito.
Eu sei que há guerras por esse mundo fora, cá em casa Portugal arde, as crianças nascem na rua, toda a gente muda de partido ou passa a "independente" a ver se arranja um lugar jeitoso nas listas à Câmara, candidatos à Presidência da República são mais de mil, mas o campeonato de futebol começou e, portanto, o nosso Fernando apresentou-se ao serviço. A televisão sem ele é uma seca, e com ele também, mas o Fernando tem pinta. Tudo continua normal, normalíssimo, e cá vamos andando com a cabeça entre as orelhas, como dizia Sérgio Godinho, o escritor de canções. O pior é mesmo o defeso futebolístico, que, felizmente, já lá vai. No defeso, como o próprio nome indica, ninguém quer saber se o Fernando é herdeiro do Pinto da Costa ou filho do Luís Filipe Vieira, ou pai do Frederico Varandas ou sócio do António Salvador, e então o que é que se passa? Isto: sem câmaras de televisão para preencher, o Emplastro monta base à porta de um restaurante de Matosinhos, não sei se convidado ou somente tolerado pela gerência, e abrilhanta, à saída, copos de brutos, hic!, quero dizer, fotos de grupos, gente bem. Nos intervalos das suas pertinentes intervenções (faz cara de Emplastro, só lhe pedem isso), o Fernando deita-se na soleira da porta ao lado e então faz papel de famélico de Calcutá, o que lhe fica um bocado mal, estando ele gordo como um chino. E pede, se vê uma máquina fotográfica, "Uma moedinha, é para comer, é para comer..." - o número do costume. Não sei quem é que actualmente lhe está a cuidar da imagem e da carreira, o superagente Jorge Mendes não é de certeza, mas há ali qualquer coisa que não bate certo. Eu sei, já disse, é no defeso, mas isso não explica tudo.
O Fernando fez-se Emplastro a pulso, porque não é tolo nenhum - ao contrário do que muitas pessoas possam pensar -, mas também deu jeito a certas e determinadas televisões que ele fosse assim. E aos jornais. E às revistas. Pois se até o "entrevistavam" e lhe fizeram o "perfil"! Por outro lado, também já mete nojo, não é? Às tantas ainda o mandam para a Arábia Saudita.
Posso dar um palpite? Posso e é o seguinte: ninguém vai querer saber do Emplastro, quando o Fernando estiver deitado na soleira e for a sério (à séria, se lido em Lisboa). Nem os comensais arrotantes nem os estudantes terminais. Quem ousará sobressaltar-se quando o Animal for realmente abandonado?...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Animal Abandonado.