domingo, 19 de outubro de 2025

De bucho cheio

Pela família, tudo!
Convidou a parentela considerada mais próxima, vinte pessoas e treze crianças. Marcou restaurante para as duas em ponto. Encomendou azeitonas, bacalhau assado no forno e tripas à moda do Porto, bebidas e sobremesa à escolha de cada qual. Pediu pratos de plástico, copos de plástico, talheres de plástico, correntes de ar, moscas e se possível formigas. Era a sua vez de organizar o tradicional piquenique de família e ele queria tudo como deve ser.

O bucho é muito importante. Alguns dirão, discordantes e escatológicos, eventualmente especulativos, que o bucho é uma merda, falso e impante, como se tivesse o rei na barriga, e vai-se a ver são gases. Respeito as opiniões. Eu, porém, cinjo-me aos factos, e não há muita volta a dar. E o que sabemos e está provado é o seguinte: o bucho é tão importante que até tem dia internacional. Exactamente. O dia 24 de Outubro, por acaso também adstrito a outras celebrações talvez mais atinadas, é Dia Internacional do Bucho. Pelo menos no Brasil, que tem dias para quase tudo, até tem o Dia do Pirulito, mas não é por aí que vamos agora. Assim simplesmente chamado, bucho, o bucho é bucho de porco. E que mais? O bucho serve para a nossa alimentação, como se dizia antigamente nas redacções da escola primária, e reconheço-o arranjado de três maneiras diferentes. Estufado como se fosse tripas, isto é, dobrada, mas sem outro acompanhamento senão o molho, tipo moelas nomeadamente de coelho. Recheado, como no Florêncio, em Guimarães, mas aviso já os principiantes que pode ser uma tremenda desilusão e uma despesa escusada e chorada. Ou com molho verde, como eu prefiro guiá-lo cá em casa, embora já não o faça há muito tempo.
A solo, como petisco, para picar, o bucho nunca foi presença habitual nos balcões e escaparates das casas de pasto fafenses. Os nossos tascos, cafés, restaurantes ou pensões, que eu me lembre, que eu tivesse alguma vez provado, nunca estiveram para aí virados. Moelas, iscas de fígado, polvo em molho verde, codornizes, ovos cozidos, filetes ou postas de pescada frita, sardinhas e fanecas fritas, bacalhau frito, pataniscas, bolinhos de bacalhau, punheta de bacalhau, chicharro de cebolada, chispe ou rabo do porco, até ossinhos da suã, isso sim, eram o pão nosso de cada dia, urbi et orbi, mas bucho não, pelo menos não tenho na ideia. Talvez, por extravagância, possa ter acontecido, uma ou outra vez, aqui ou ali, sem o meu conhecimento, sem a minha autorização, mas é como digo, senhor doutor juiz, com os meus olhos eu nunca vi.

Quem lhe dava bom uso, ao bucho, era a querida Tia Laura, que era uma cozinheira de mão-cheia e fazia uma feijoada com tripas de porco tão extraordinária e constada que até os sinos da Igreja Nova tocavam à hora certa só para avisar que a comida estava pronta, meninos à mesa! As "tripas" tradicionais, com sola e folhada de bovino, também lhe saíam às mil maravilhas, e não apenas sete, aliás tudo em que as mãos da tia tocassem, na cozinha, nem que fosse batatas cozidas com bacalhau, transformava-se imediatamente em ouro, era de comer e chorar por mais, de lamber o beiço e ver estrelas. Isso, estrelas, disse bem.
E a Tia Laura guardava sempre um bocadinho para mim, contava sempre comigo após as refeições. Logo desde o princípio, quando casou com o Tio Mérico, e começou, ipso facto, a ser minha tia. Era ainda o tempo da Bomba, eu rapazito mas nunca faltava, e havia um mosqueiro na cozinha, logo à entrada, no canto do lado esquerdo, quem ia por dentro, quase em cima da banca. Mosqueiro, para quem não saiba, era um pequeno armário feito em madeira e com portinhola de rede fina, colocado na parede geralmente ao nível dos olhos de um adulto, e servia para guardar alimentos já cozinhados, mantendo-os arejados e, principalmente, protegidos das moscas. Era desse cofre-forte de miminhos requintados que a minha tia retirava, mal eu chegasse, e só nós dois, um bolinho de bacalhau, um taquinho de bacalhau frito, um filetinho de pescada, duas ou três sardinhinhas, um toquinho de frango ou uma mãozinha de coelho, um rojãozinho, umas lasquinhas de vitela, o que fosse naquele dia, e, apanhando o meu avô de costas, punha-me também uma pinguinha. Eu, valha-me Deus, ficava no céu!
Quando os tios foram para o Lombo, eu segui-os, evidentemente. Era já adulto, passara pelo seminário e pelos Comandos, trabalhava na Marigam, namorava no Porto aos fins-de-semana, mas o meu bocadinho e a minha malguinha estavam sempre lá à minha espera. Quando a Tia Laura fazia a famosa feijoada com bucho e tripas de porco, coisa rara, é verdade, mas creio que geralmente à quarta-feira, ao almoço, no anexo multiusos, garagem, cozinha rústica e salão de refeições, convidava-me de véspera, e isso, na nossa família, era uma distinção inigualável, uma quase medalha, uma coisa, enfim, para ser levada muito a sério, e não se fala mais nisso, senão ficamos todos a chorar...
E eu ia. Dos Fiéis de Deus ao Lombo e vice-versa, sempre a dar-lhe, a penantes, que é a única carta de condução que tenho, ainda hoje, aproveitando todos os atalhos e a inexistência de semáforos, saindo um bocadinho mais cedo do trabalho, chegando um bocadinho mais tarde, a suar por todos os poros, por todos os lados, feito num oito, com os bofes de fora, no limiar da congestão, nem sei como nunca morri e mais do que uma vez. E, no entanto, morreria satisfeito.

(Versão revista e muitíssimo aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Cozinha para o povo

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de outubro de 2025

Às vezes mando passear o telemóvel

Contra tudo o que mais prezo, o meu lamentável telemóvel também está equipado com aquela extraordinária e inutilíssima aplicação a que chamam "pedómetro", embora fosse melhor chamar-lhe "podómetro", mas a que eu chamo "contador de passos". Para ficar satisfeito como um tamagotchi, o contador precisa de dez mil passos diários - e então arrota. E o que é que eu faço? Em dias assim de maior preguiça, peço ao meu filho que me leve o telemóvel a dar uma volta...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Preguiça.

Pó tacho

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Ser pobre é uma chatice

A gula é pecado. Mas a fome não. O catecismo só pode estar errado.

Ser pobre é lixado. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, vaga ideia, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O respeitável jornal Público anunciava, no tempo da troika: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vede bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século XXI, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles, culpa deles, fossem para a Universidade, aprendessem Inglês. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é deveras dada a promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Pediam-nos a nós, porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974. E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim acontecia na minha Escola Conde Ferreira. Era só atravessar a estrada, mesmo em frente.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Pôr um  carimbo vitalício na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado pudesse saber imediata e inequivocamente quem podia ou não comer a sopa, teria sido talvez uma melhor ideia, mas a verdade é que a coisa não foi por aí.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974, repito, que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa, não sei se me faço entender.

Para quem não sabe ou não se lembra. No casarão onde era servida a sopa às crianças pobres da escola de Fafe, em condições sem condições nenhumas, funcionaram também, que me lembre e não sei se coincidindo, a Câmara Municipal, o centro de saúde e os serviços municipalizados de água e electricidade. Fui lá uma vez, à sopa, para ver como era. E não gostei.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios der Fafe. Hoje é Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza.

Menos dois vereadores

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Comer com os olhos

Miss Universo
Miss Universo desejou paz mundial, amor e pão para todas as crianças. Aniceto desejou Miss Universo.

Eram dois homens, já na segunda metade da idade. Um deles fica à porta, enquanto o outro entra no restaurante. O proprietário, que o recebe no hall, pergunta-lhe "É para almoçar?" e o homem responde "É para dar uma vista de olhos". O dono do estabelecimento, embora lhe apeteça, não disparata: "Faça favor. Isto não é nenhum museu, portanto não paga para ver."
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
É. Comer com a boca, qualquer dia, vai ser só uma força de expressão.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial do Pão e Dia Mundial da Alimentação.