Foto Hernâni Von Doellinger |
Tarrenego!
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Comer com os olhos
Miss Universo
Miss Universo desejou paz mundial, amor e pão para todas as crianças. Aniceto desejou Miss Universo.
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
É. Comer com a boca, qualquer dia, vai ser só uma força de expressão.
P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial do Pão e Dia Mundial da Alimentação.
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Chancas à porta
Foto Hernâni Von Doellinger |
Gato-sapato
Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.
As chancas eram de pobres. De gente do campo, rota e remendada. Suja. E de choro e ranho em casa, ó mãe eu tenho vergonha de ir assim para a escola, quero uns sapatos como os outros meninos. Efectivamente, os meninos ricos tinham sapatos, botas e sandálias, consoante a estação do ano no tempo em que havia estações do ano, e os paizinhos dos meninos ricos, depois de razoavelmente gastos os sapatos, as botas e as sandálias dos filhos, vendiam o calçado aos pais dos meninos pobres. Vendiam. Na minha terra, os paizinhos dos meninos ricos eram muito ricos e muito da religião e da santamissinha e das procissões e vicentinos, mas vendiam aos pobres - não davam. Vendiam. Se calhar por isso é que eram ricos. Quem dá aos pobres empresta a Deus, quem vende aos pobres é que se safa. Alguns safaram-se, amém.
Chancas é calçado de pau, valha-me Deus! E, no entanto, chancas era bom. Porque abaixo de chancas eram socos, ainda mais miseráveis e lavradorescos, e abaixo de socos era descalço. Sim, descalço. Andava-se descalço no Portugal pré-25 de Abril. Andava-se descalço por necessidade, e quem andasse descalço era multado pela polícia, ia para o posto e até podia acabar na Pide e na cadeia.
Ora, as chancas. As chancas, exactamente como as galochas, estão agora na moda e caras. Suponho que os netos, as netas, os bisnetos e as bisnetas dos ricos da minha terra correm todos a comprar chancas, envergonhando os antepassados que faziam pouco dos pobres chancudos e antigos. Anacrónicos por maldição, os pobres da minha terra calçarão modernamente sapatinho dirópito - e choram por andarem toda a vida ao contrário. Choram. E eu só me dá para rir.
À conclusão: ao andar, as chancas e os socos, batendo em cheio no chão, faziam um basqueiro desgraçado. Dentro de casa, naqueles velhos soalhos gastos, carunchosos e periclitantes, então era um autêntico terramoto, aliás muito bem aproveitado como fundo musical pelos ranchos folclóricos. Mas no dia-a-dia antigo, doméstico, as chancas e os socos ficavam à porta, do lado de fora. Por causa do banzé, da lama e da terra que traziam agarradas dos campos e do quintal, e evidentemente derivado ao insuportável chulé. Insuportável mas honrado.
P.S. - Versão publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Mulher Rural.
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A reinvenção das galochas
As mulheres do campo, as lavradeiras, sempre andaram de galochas. Era assim em Fafe, era assim o mundo. Antigamente, para os demais, uma mulher de galochas era de rir, era parola. Agora andar de galochas é moda, as mulheres vão de galochas para o escritório e para o café. Fico à espera do avental. Ainda hei-de ver as madamas a tomarem chá de mindinho esticado e com um molho de couves à cabeça.
P.S. - Versão publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Mulher Rural.
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terça-feira, 14 de outubro de 2025
Eleições, futebol, tropa e alguma batota
Dão-se alvíssaras
Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.
As primeiras eleições livres, democráticas, com sufrágio universal, realizaram-se em Portugal no dia 25 de Abril de 1975, celebrando o primeiro aniversário da Revolução dos Cravos. Eram as eleições para a Assembleia Constituinte, para a organização da democracia nova em folha, tendo votado cerca de 92% dos eleitores, isto é, quase seis milhões de portugueses. Nunca mais houve uma participação assim.
O acto eleitoral foi vigiado urna a urna pelas Forças Armadas, que enviaram um pequeno destacamento para todos os concelhos do País sem guarnição. Em Fafe, os militares montaram posto de comando no quartel dos Bombeiros, suponho que para aproveitarem a incipiente central de comunicações já existente na corporação. E eu ali, mais uma vez no meio da História, embora correndo por fora, como sempre, rindo-me como um perdido dos velhos polícias fafenses, naquele tempo Fafe tinha PSP, batendo a pala desajeitadamente a um aspirante imberbe e com cara de copinho-de-leite, se bem que quem realmente mandava naquela tropa toda era o Dr. Parcídio Summavielle, em funções de presidente da Comissão Administrativa da Câmara de Fafe, sempre de um lado para o outro, ele é que dava as ordens que eram para levar a sério, ele é que dizia onde se ia ou não ia, o que estava bem e o que estava mal, o que se fazia ou deixava de fazer.
Os soldados traziam rações de combate para o almoço, e foi o que comeram, coitados. A minha tia Laura é que não concordou com aquilo, "não tinha jeito nenhum", teve pena dos rapazes e fez-lhes um tachinho de comidinha boa, quanto mais não fosse para os desougar. Regalam-se os magalas que por ali estavam àquela hora. Já lhes valera a pena a vinda a Fafe. A Tia Laura era uma cozinheira de mão-cheia e, feitio e vocabulário à parte, tinha um enorme coração.
A tropa esteve em Fafe mais duas vezes naqueles tempos de festa e brasa, mas chamada de urgência para meter o povo na ordem. Logo em Maio de 74, com a revolução ainda no ar, o árbitro Porém Luís (1929-2010) só conseguiu sair do Estádio, escoltado por militares que vieram, creio, de Braga, três horas após o fim do jogo da AD Fafe com o Gil Vicente, que terminou 0-0. O Fafe lutava pela subida à primeira divisão e o trabalho do juiz de Leiria (nascido no Barreiro) deixou muito a desejar, principalmente junto dos adeptos fafenses, que, a verdade também é só uma, sentindo-se "roubados", e de cabeça perdida, queriam, a todo o custo, chegar-lhe a roupa ao pêlo. Pelo menos. Em todo o caso, ainda hoje estou convencido de que, se tivessem revistado Porém Luís à saída, as autoridades talvez lhe descobrissem dois penáltis nos bolsos. Um não marcado sobre o nosso Manuel Duarte e o outro não marcado sobre o nosso Valença. A AD Fafe ficou em segundo da zona, foi à liguinha nacional e não subiu.
No Verão Quente de 1975, logo em Junho, quando tudo começou, a sede do PCP de Fafe foi atacada, houve resposta, tiros, um morto, feridos, ameaças de nova investida e de destruição total. Durante a noite chegam os fuzileiros, cabeludos, barbudos, com autocolantes de esquerda nas fardas. Apartam águas, serenam os ânimos e protegem o edifício. O resto foi uma ferida que nunca mais sarou.
(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)
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segunda-feira, 13 de outubro de 2025
As rosas do coveiro Gusto Sardão
O caminho da Felicidade
É fácil, facilíssimo. Sempre em frente até ao largo da igreja, vira à direita pela rua com árvores, passa pelo campo da bola e pela sede, torna à esquerda e logo na esquina, encostada ao café e depois do funileiro, há uma casa pequenina com porta vermelha e vasinhos floridos na janela: é aí que ela mora. Ela e os dois filhos. Cuidado com o cão!
No jardim dos meus sogros havia meia dúzia de roseiras razoavelmente produtivas e formiguentas. As flores vinham sempre cá para casa, as formigas às vezes também. Cinco das seis roseiras do jardim dos meus sogros davam rosas vermelhas, mas daquele vermelho sanguíneo, belíssimo, rosas de livro, de cartaz e de filme, e cheiravam a nada, coisa nenhuma, como se fossem de supermercado, de plástico. A outra roseira, exemplar único, logo à entrada, dava umas rosas cor-das-mesmas, numa corzinha envergonhada e pálida, quase pedindo desculpa, e porém manda-me cá para fora um perfume que inebriava a léguas.
Era um cheiro bom que eu já conhecia e me tornava a Fafe, aos meus aromas de infância, enchia-me de saudades. Havia umas rosas assim, selvagens e vibrantes, ao fundo do esmerado quintal da Dona Maria Margarida, na espécie de alameda que descia a propriedade desde a Rua Monsenhor Vieira de Castro, partilhando muro com os terrenos do casarão do Zé de Freitas, que agora é o Aldi, e ia desembocar à Quelha, evidentemente com portão no fim, sempre fechado, quase em frente à velha nora de alcatruzes às vezes movida por boi ou vaca, por inexplicável falta de burros. Que bem que cheiravam aquelas rosas! E logo ali ao lado, na senhorial entrada da Casa do Santo, no pátio empedrado após o portal com brasão, eram as glicínias que emprestavam o seu perfume doce ao ambiente. Que bem que cheirava geralmente a Quelha, sítio de prazeres, amor, pecado e outras necessidades! Que tempos! Entretanto, a casa da Dona Maria Margarida, com vista, foi depois casa do Chiquinho Gonçalves, sem vista, e consta por lá hoje em dia o McDonald's, se não me engano. São outros cheiros...
Mas a nossa roseira. A roseira perfumosa, extraordinária, fora oferecida ao meu sogro, há muitos muitos anos, pelo Gusto Sardão, então coveiro titular do cemitério da então freguesia de Nevogilde, Foz rica, concelho do Porto. Para os registos: Augusto Francisco da Costa Almeida, enterrador de categoria e decilitrador condecorado, creio que uma coisa tem a ver com a outra. O Senhor Augusto - Senhor, para mim, com todo o respeito - era um homem pequeno, queimado, irrequieto, malandro, tinha a voz mais bagaceira que Deus ao mundo botou, muito mais completa do que a do incompreendido disc jockey Bruno de Carvalho ou a do incompreensível actor Joaquim de Almeida, parece que ainda o estou a ouvir, ao coveiro, o que é tecnicamente impossível. Com efeito, um dia o Senhor Augusto resolveu seguir as pisadas da clientela, faleceu ele próprio para não empecilhar o negócio, e actualmente confraterniza com os seus antigos ossos do ofício. Isto é: continua ao serviço, mas agora do lado de dentro. Não sei como nem quem lhe paga a féria. O bom Gusto Sardão era, ou por outra, podia ter sido, penso-o agora, uma figura típica de Fafe, um cromo dos nossos tascos, do Peludo, parece impossível como é que só vim a conhecê-lo no Porto.
Quando o nosso Kiko nasceu, o Senhor Augusto ofereceu logo mil escudos para a conta que a Mi e eu haveríamos de abrir para o menino, e abrimos. O Gusto foi o primeiro dador, no dia 1 de Maio de 1984, antes ainda da Dona Senhorinha Bastos e do abono, está tudo registado no livrinho. Eu não sabia deste uso pós-natal, e, confesso, aquilo, na altura, comoveu-me bastante.
Mas a roseira. A roseira extraordinária, delicada e odorosa, veio exactamente do cemitério, e isso é que eu ainda não tinha contado, e isso é que a torna realmente extraordinária. Do cemitério de Nevogilde, lugar do "santo" Menino Quim, de bruxedos ao portão e de outros espantos. As rosas, por exemplo. Rosas que não alcançavam a exuberância cardiofálica e escandalosa dos antúrios de ficção do fotógrafo Jorge Tadeu, na telenovela brasileira Pedra Sobre Pedra, mas que, na sua modéstia, se ofereciam abertas e feminis, reais, a quem as quisesse e soubesse desfrutar.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas deu. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além do óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao serviço pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas deu. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além do óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao serviço pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.
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