sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Coisas do género

Alice Cooper e Vieira da Silva, os nomes, bem me enganaram durante anos. Felizmente soube a verdade ainda em Fafe, muito a tempo de não fazer figuras tristes por esse mundo fora. E então ri-me.

Em nome do Pai, do Filho e de Mim

Foto Tarrenego!

O auto-suficiente
Beijo-me e desejo-me - dizia.
 
Entram em campo. Jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, apanha-bolas, tratadores da relva, stewards, polícias fardados e à paisana, navalhistas, maqueiros, carregadores de bandeiras, repórteres de pista, vendedores de pirolitos, e até o presidente da Câmara, com uma grandessíssima lata, para dar o pontapé de saída. Todos se benzem como se entrassem em sítio santo, circunspectos, cândidos e amorosos, e no entanto vão passar quase duas horas a, pelo menos, chamarem-se "filho da puta!" uns aos outros, como o Senhor nos ensinou. Fazem o sinal da cruz antes da função, para que dê sorte, para esconjurar azares ou, sei lá eu, talvez porque não fazem ideia nenhuma do que aquilo quer dizer. Pelo sim e pelo não, sinal da cruz em versão resumida, "Em nome do Pai", mão direita na testa, "do Filho", mão no peito ou barriga, "e do Espírito", mão no ombro esquerdo, "Santo. Amém", mão no ombro direito. Tudo mais ou menos como se aprendia na catequese. Exactamente, benzem-se. Mas depois acrescentam-lhe um beijinho na mão propriamente dita, no pulso, no dedo, fazem coraçõezinhos para a televisão, apontam para o céu, metem a bola na barriga, espetam bandarilhas, fazem mil e uma macaquices, benzem-se e beijam-se em seu nome pessoal, autobeijam-se, uma vez, duas, três, que desperdício mas foi a conta que Deus fez, num narcisismo sem jeito, numa espécie de egolatria canonicamente desautorizada, onanista, para não lhe chamar outra coisa.
Todos. Não passam sem a chupadelazinha no dedo, que - perdoai-me que vos diga - vale tanto no Céu como a entrada em campo com o pé direito. Deus está realmente à coca, tudo vê e tudo sabe, mas vê pouco futebol e também é Pai do pé esquerdo.
E não é só no futebol. Mesmo nas igrejas, onde o rigor deveria imperar, esta entorse litúrgica vem passando de geração em geração, e os frequentadores de hoje em dia até acreditam que foi sempre assim, que é assim. Mas não é: o beijo em mão própria está a mais, não faz parte do sinal da cruz.
Eu acho que sei como é que isto tudo começou. No tempo em que a missa era em latim e o povo, que já se via à rasca para perceber o português, aproveitava para ir rezando terços atrás de terços enquanto o padre, de costas voltadas para os fiéis e para o mundo, se ocupava naqueles Dominus vobiscum que eram lá um assunto entre ele e o pobre do sacristão, que ajudava o melhor que sabia sem saber muito bem a quê, entregava a galheta, tocava a sineta e segurava a patena.
Parece que ainda ouço. As igrejas ecoam, sabeis? O terço era sonoramente ciciado por mulheres enfiadas em bigodes e lenços pretos, bzzz, bzzz, bzzz, num cochicho ao despique remetido directamente a Deus Nosso Senhor, embora devesse levar Nossa Senhora no endereço - lá em cima que se entendessem. O comendador Santos da Cunha, que era governador civil de Braga e vinha a Fafe às inaugurações e aos casamentos e funerais dos ricos do regime, também fazia bzzz, bzzz, bzzz, mas com voz de trombone, de terço na mão ostensiva e papuda, durante a missa inteira, e já ela era praticamente toda em português, tirando o Agnus Dei. E se o senhor comendador fazia, e fazia que se soubesse, é porque era a Bem da Nação - naquele tempo não havia dúvidas a esse respeito.
Ora bem. No fim da reza, e independentemente do que o padre estivesse a fazer lá à frente e do ponto em que a missa fosse, as pessoas benziam-se e beijavam respeitosamente o crucifixo do terço, que levavam aos lábios entre o dedo polegar e o indicador. Beijavam a cruz, não a mão, mas estais a ver a confusão que dali saiu? Agora beijam a mão, batem no peito, soltam um ou dois palavrões e assoam-se à camisola, amém.

Quer-se dizer. António Maria Santos da Cunha (1911-1972) foi presidente da Câmara de Braga durante doze anos, governador civil do distrito e deputado à Assembleia Nacional. Vinha realmente muito a Fafe e era amigo do Mendes Ribeiro da Fábrica do Ferro e de outros figurões locais da situação fascista. Santos da Cunha tem um monumento na Cidade dos Arcebispos e é o imponente cidadão mais à esquerda, salvo seja, lá em cima no retrato, acompanhando de olhos revirados uma das visitas do ministro Baltazar Rebelo de Sousa aos Bombeiros da nossa terra. O pai do Presidente Marcelo é o segundo a contar da direita, o de óculos. Atrás, há por ali algumas caras da minha meninice que me trazem imensas saudades.
E já agora: a reforma da missa católica aprovada no âmbito do Concílio Vaticano II (1962-1965) foi publicada no dia 5 de Novembro de 1970 e virou o padre para o povo. Hoje em dia não se nota muito, mas foi assim que as coisas se passaram.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Figos de seira baixa

Fruta da época
Era Dezembro. Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri.

Consta que existem no mundo mais de 750 tipos de figos, entre os quais os nossos muito apreciados preto de Torres Novas, lampa preta, pingo de mel ou roxo de Valinhos, por exemplo. Há figos verdes, vermelhos, amarelos, roxos ou pretos. Há figos lampos ou temporãos, os que amadurecem mais cedo, habitualmente entre Maio e Julho, e figos vindimos, que se aprontam mais tarde, entre Agosto e o início do Outono. Há figos frescos e figos secos. E havia figos de seira alta e figos de seira baixa. Pelo menos em Fafe.
A seira é um cesto ou saco de esparto, onde se deita a azeitona depois de moída, para a espremer, ou onde se guardam ou levam pregos, ferramentas ou figos. As seiras com figos, geralmente frescos, eram carregadas à cabeça das antigas vendedeiras para mercados e feiras, ou de rua em rua, com velhos pregões a condizer. E também iam de burro, três ou quatro seiras de cada lado do lombo, julgo ainda ter visto esta cena uma ou duas vezes, à porta dos tascos do Zé Manco e do Paredes, e nestes casos seriam seiras com figos secos. Os figos transportados lá no topo das senhoras e em cima dos jericos eram, para nós, "figos de seira alta". Por outro lado, havia os "figos" que os burros iram largando naturalmente pela retaguarda, primeiro frescos, fumegantes, e depois secos, com o tempo, e esses, na nossa terra, naquela época, eram "figos de seira baixa"...

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

O homem que se esqueceu de dizer virilhas

Se um elefante...
- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica. Diz-se pélvica. Dããããã!...

O homem que se esqueceu de dizer virilhas sou eu, passe a imodéstia. Por razões que não vêm agora ao caso, mas eram boas, houve uma larga temporada nos últimos anos em que eu precisei de usar assiduamente a palavra virilhas. Ora acontece que, quando a queria dizer, ela - a palavra, essa mesma, virilhas - não havia maneira de me sair, geralmente varria-se-me da memória, e nem sequer posso alegar que a tinha na ponta da língua, porque isso também não é coisa que se diga. Nessas delicadas ocasiões, vinham-me à cabeça a palavra narinas, sempre gostava de saber porquê, a palavra testículos, evidentemente, e a palavra ínguas, sobretudo a palavra ínguas, que emergia do meu antigamente fafense e parecia-me que andava por lá perto. Mas virilhas é que nada. E eu ficava envergonhadíssimo.
Que se segue: contei aos meus amigos a aflição deste estúpido bloqueio, e um diz-me: - É normal na tua idade. Sou mais novo e tenho às vezes o mesmo problema, mas com a palavra pevides. Não é grave.
Não é grave, vírgula - isto já sou eu outra vez. Porque não se pode comparar virilhas com pevides. E pevides de quê? Pevides secas ou frescas? Nacionais ou importadas? Para aperitivo ou sementeira? Por outro lado, quando eu precisava da palavra virilhas era geralmente para a dizer a senhoras. E, na angustiante ausência da palavra, acabava por acudir-me das mãos, do gesto e do sítio para conseguir explicar-me. Estais a ver onde me agarrava? E achais isso bonito?...

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional do Idoso.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

O enchousado

Advérbios
- Sobretudo ou principalmente?
- Com este frio, sobretudo!

O indivíduo de triste figura, enfezado, talvez torto, talvez sujo, talvez faminto, acabrunhado, macambúzio, encolhido, atafulhado de roupa desaparelhada, quatro pares de calças, três casacos, dois sobretudos e uma gabardina, como se fosse um guarda-vestidos ambulante, como se tivesse acabado de assaltar uma loja de vestimentas velhas e invernosas - esse, assim nestes preparos, estava enchousado, era enchousado. Enchousar, o verbo, pode também querer dizer espancar, sovar, bater em. E confere. Para isso servem os pobres enchousados, para sacos de pancada.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

Isaías, profeta e avançado

Isaías era profeta. Filho de Amoz, nasceu por volta de 765 a.C., acompanhou os reinados de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias, uma linha média de se lhe tirar o chapéu quando disposta em 4-4-2 losango, casou com uma mulher conhecida apenas pelo nome de Profetisa, nome que o marido lhe pôs, e tiveram dois filhos: Sear-Jasube e Maer-Salal-Hás-Baz. Está-se a ver, portanto, aonde é que os nossos irmãos brasileiros e a Luciana Abreu vão buscar os nomes para os seus rebentos.
Isaías escreveu um livro para a Bíblia chamado especificamente Livro de Isaías para não ser confundido com o Deuteronómio. A crítica não lhe foi favorável. Diversos especialistas descrêem que a obra tenha um único autor, Isaías ele próprio, vendo-a, antes, como um trabalho a várias mãos e de diferentes épocas, coligido eventualmente no ano 400 a.C, ou até mais tarde. Isaías seria assim uma espécie de escritor dos nossos dias, nome de capa, escritor do que já foi escrito. Por outros.
Amuado com semelhante desmerecimento público, Isaías deixou-se de profecias, abandonou o reino de Judá e veio jogar futebol para Portugal, em 1987. Começou pelo Rio Ave, brilhou no Boavista e foi para o Benfica, onde fez cinco épocas, 178 jogos e 71 golos, ganhou dois campeonatos e uma Taça. Passou pelo Coventry City, de Inglaterra, e tornou cá em 1999, para representar o Campomaiorense. Regressou ao Brasil em 2000 e pendurou as botas em 2003.
Ficaram célebres os seus dizeres numa por acaso flash interview: "Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma, escutai a lei do nosso Deus, povo de Gomorra."

No dia 30 de Setembro de 1452, faz hoje anos, começou a ser impressa a chamada Bíblia de Gutenberg, considerada o primeiro livro do mundo. Hoje é Dia da Bíblia Católica e Dia Internacional da Tradução, crê-se que em homenagem a São Jerónimo, doutor da Igreja e conhecido por ser o primeiro tradutor das Escrituras para o latim vulgar, popularizando assim o seu conteúdo. Já agora, e só para que conste: a minha Bíblia é protestante. Curiosamente, hoje é também Dia da Blasfémia ou, melhor dito, Dia Internacional do Direito à Blasfémia.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A polinheira e a trepa

Um par de estalos
Os estalos são como os óculos, as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, as alianças e até os cornos. Usam-se aos pares.

Uma polinheira era uma tareia, uma sova, uma surra, uma tunda, uma coça, um enxerto, um enxerto de porrada perpetrado amiúde com uma vara ou fustiga, às vezes com um cinto e habitualmente de mãos estremes, ou até com o pé que estivesse mais à mão. Quer-se dizer, uma polinheira era uma trepa, que deve ler-se e dizer-se "trépa" e, neste caso, também podia significar folho de vestido. Polinheira e trepa, palavras nossas, antigas, questão cultural, do tempo em que o povo era muito honrado, um povo que dava, dava muito, dava tudo, era gente pobre mas de mãos largas, até dava polinheiras e trepas, dava porrada de criar bicho, era uma fartura, graças a Deus. E quem recebia, levava. Levava polinheiras, levava trepas, sempre pela medida grande, levava até para tabaco, mesmo que não fumasse, era o pão nosso de cada dia. Polinheira e trepa eram palavras com muito uso e imensa prática, no nosso Minho, em Fafe, metidas a cotio por uma questão de princípio, porque "quem dá o pão, dá a educação". E educar era bater. E aprender era levar, consoante o ponto de vista. Em casa, na escola e até na catequese, porque a pancada, naquela época, era como Deus nosso Senhor - estava em toda a parte.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)