quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Coelho Neto 5

Cesário, debruçado sobre um grande atlas, aberto em cima da mesa, passeava o longo e nodoso dedo pela carta, resmoneando. Sentindo os passos de Jorge, levantou a cabeça:
- Estamos independentes, hem? Foram-se as gralhas? Pois, meu amigo, grandes e verdadeiras foram as palavras que eu aqui te disse: tenho os ouvidos atordoados ainda e atenta bem a ver se não escutas, de quando em quando, o eco abominável das gargalhadas daquela partênia. Não sentes? São de assombrar, palavra! Precisamos recitar aqui dentro a Oração de Demóstenes ou alguma coisa de Cícero para purificar o ambiente. Dize-me: tens por aí alguma carta do mundo antigo? Ando a refazer o roteiro dos Árias, preciso disso para a minha obra e não encontro nesta carta sórdida senão coisas de ontem, discriminações pulhas de lugarejos vis, sem história, sem tradição, sem passado colônias inglesas, terras esterilizadas pela cobiça e pela crueza dos homens e dos tais sítios nem menção. Vê se descobres por aí nos teus cabedais alguma coisa. Se não tens, dize de uma vez para que eu desça. É possível que encontre na Biblioteca o que preciso. Ainda assim prefiro que procures porque, como é coisa preciosa e útil, decerto não será fácil achar nas estantes da Alexandria indígena.
E curvou-se de novo, mas, sempre passeando o dedo pela carta, interpelou o amigo:
- E a Cegonha, hem? Não foi. Já a vi pensativa e murcha ali na varanda a buscar sonhos no céu com os óculos radiantes. Mulher forte!

"Inverno em Flor", Coelho Neto

(Coelho Neto nasceu no dia 21 de Fevereiro de 1864. Morreu em 1934.)

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