sexta-feira, 4 de julho de 2025

Os dias da Senhora de Antime

Anjinhos, não!
Deveria querer dizer alguma coisa a nosso respeito, agora que penso nisso, mas não sei se diz. Já reparastes, certamente. Não há procissão no mundo que leve e chame tanto povo como a procissão da Senhora de Antime, em Fafe. Um mar de gente, povo atafulhado, a rebentar pelas costuras, sem espaço sequer para descruzar os braços e coçar repentinas aflições. Isso, povo em barda e de todos os feitios. Nós. O povo da terra, inteiro e simples, ali na procissão como na vida. Povo, povo, povo. Mas anjinhos, não...
 
Mete-se o mês de Julho, chega o calor, e Fafe vive os seus dias mais extraordinários. É tempo de Senhora de Antime. São as Festas de Fafe, que já foram da Vila, do Concelho e da Cidade. Os senhores da Câmara podem chamar-lhe o que quiserem, e até já lhe chamaram "certame", santa ignorância, mas toda a gente sabe que é a Senhora de Antime e o resto é conversa. Toda a gente, quero eu dizer, os fafenses do rés-do-chão, o povo, que é quem realmente sabe das coisas. Lá em cima, há evidentemente uma "organização", que antigamente era comissão de festas, e a "organização" apresenta um programa com muitos bombos, cabeçudos e gigantones, bandas filarmónicas, ranchos folclóricos, fado de Coimbra, nunca percebi porquê, e um considerável naipe de artistas mais ou menos musicais, à dúzia, de dentro e de fora, do TikTok e da televisão, famosos regra geral, excelentes às vezes, para quase todos os gostos. Três ou quatro desses artistas, a "organização" é que escolhe quais, são anunciados como "cabeças de cartaz".
A Senhora de Antime, no entanto, é a procissão. E isto é tão básico, valha-me Deus! Há séculos que o digo, mas afinal não adianta: a procissão é que é cabeça de cartaz das nossas festas. Domingo, o segundo domingo de Julho é a Senhora de Antime, a Senhora de Antime é esse domingo exacto, o nosso domingo mais fafense, o domingo mais esperado do ano. O dia único de ir "ver a Senhora", que coisa tão linda de dizer! O domingo da procissão que me leva às lágrimas, que quase me sufoca num soluço sacrista, palerma, aperto a mão da Mi, que já sabe do que a casa gasta, despejo a água dos óculos, de sol, para a próxima trago óculos de mergulho, rio-me desajeitadamente para o Kiko, com legendas de cinema mudo, não ligues, filho, é a velhice, não vem mais vinho para esta mesa. O Kiko sorri, faz sinal que percebe, que me compreende, parece que me promete um abraço para melhor altura. Tem razão. A Senhora está mesmo à nossa frente. Foi ao cabeleireiro, penso todos os anos, e aproveito para recompor-me. Não tem nada a ver com fé, religião ou família, é sentimento, fafismo tão-somente, fafismo puro e duro, e fafismo não se explica, vive-se, e nem é preciso ter nascido em Fafe para sentir fafismo, também dou isso de barato.
A procissão é que é. A procissão e a explosão do encontro das duas senhoras, das Dores e da Misericórdia, no Lombo ou na Ponte de São José. A sirene que toca à tradicional paragem dos dois andores no cruzamento do Santo Velho, junto ao Palacete, o nosso sítio combinado, como se os Bombeiros antigos ainda ali estivessem ao pé. E a sirene não toca, é um pranto. As pombas largadas e atordoadas e os salamaleques e foguetes excessivos e emproados à porta dos Paços do Concelho.
A procissão da Senhora de Antime, costumo ensinar a quem não sabe, é provavelmente a melhor procissão do mundo e certamente uma das maiores do mundo. Alguns palavrosos chamam-lhe até "Majestosa Procissão", mas ela é tudo menos majestosa. É popular, é simples, espontânea e incomensurável - a olhos de fora, impreparados, poderá até parecer desorganizada, mas não. É o povo que desce inteiro com as duas senhoras até à vila a que agora chamam cidade, não vejo com que vantagem. O povo de pé-descalço e bico calado, respeitoso, talvez com um flor nos lábios fechados para garantir fidelidade ao silêncio juramentado. Milhares de pagadores de promessas furando em marcha lenta pelo meio de milhares e milhares de devotos de bancada, apreciadores, preguiçosos, retardatários, ressacados, curiosos ou simples mirones, famílias inteiras, reunidas, carteiristas, apalpadores e empernadores que se atravancam nas beiras da estrada e nos passeios das ruas. É uma procissão tremenda e comovente, multitudinária e única, uma procissão a sério - A Procissão -, como tenho a mania de explicar aqui aos meus vizinhos que ficam banzados com a meia dúzia de almas penadas e a dúzia e meia de figurões autárquicos e outras autoridades civis, militares e religiosas, assim catalogadas, que todos os anos acompanham a imagem do Senhor de Matosinhos pelas ruas desta cidade que me acolhe, num deserto que só visto.
A procissão da Senhora de Antime é que é. Por mais dias que metam nas festas, por mais estrelas que chamem ao palco, a procissão será sempre cabeça de cartaz. Em Fafe, ano após ano, a Senhora é que arrasta multidões.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe arrancam já amanhã, sábado, dia 5, e vão até dia 13, domingo da próxima semana, o tal.)

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O Silva dos plásticos

Fui à peixaria. Pedi meio quilo de fanecas e a senhora meteu-mas num saco de plástico; pedi meio quilo de lulas e a senhora meteu-mas num saco de  plástico; pedi dois carapaus e a senhora meteu-mos num saco de plástico; pedi meia dúzia de marmotinhas e a senhora meteu-mas num saco de plástico; pedi uma mão-cheia de petinga e e senhora meteu-ma num saco de plástico; pedi uma solha e a senhora meteu-ma num saco de plástico. A senhora:
- Que mais?
- É tudo.
- Quer um saco?
- Como sempre.
- São dez cêntimos.
- Este peixe todo?
- O saco é que custa dez cêntimos.
- Porquê?
- Porque é de plástico.
- E?
- É para proteger o ambiente.
- E os seis saquinhos com o peixe?
- São de graça.
- Não são de plástico?
- São.
- E só o sétimo é que prejudica?
- Não sei. Pergunte ao Moreira da Silva.

P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Fevereiro de 2015. Jorge Moreira da Silva é do PSD. Foi ministro do Ambiente no tempo de Pedro Passos Coelho e, exactamente em 2015, pôs os sacos de plástico a pagar imposto, com um sucesso que só visto. Hoje é Dia Internacional Sem Sacos de Plástico.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Piadistas e outros mentirosos

A piada, para ser fina, não deve ter mais de três milímetros de espessura.

Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram geralmente de partir a moca. Fafe é de rir, por natureza. Sempre foi. Já no meu tempo era de rir, ríamo-nos como perdidos, por tudo e por nada. Claro que antigamente éramos uns amadores, caseirinhos, artesanais, ríamo-nos uns dos outros, uns com os outros, às vezes uns contra os outros, tínhamos riso que chegasse, não mandávamos vir de fora. Éramos, em questão de riso, auto-suficientes.
As anedotas é que vinham do exterior, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, era uma técnica de marketing como outra qualquer. Vendedor sem anedotas não ia a lado nenhum, essa é que é a verdade.
Neste deserto de criatividade, as excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira, aliás António Augusto Abreu, e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é, sem comparança, o melhor relatador português de futebol de hoje em dia, na rádio Antena 1, e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o bom do Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja era de roupa, de moda, chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam às prestações de quartos de horas, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a nossa Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães, e esta parte, sou obrigado a admitir, dada a rivalidade tola entre as duas terras, não abona nada a meu favor. Evidentemente também sei de cor a música do Hino de Fafe e, com ajuda, ainda me oriento na letra do refrão.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas frescas, ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, dava-lhes a volta lá à maneira dele e contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família em férias, o que só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, à hora da missa, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, ainda no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de palhaços ou bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
O Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado, preparado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável, escusavam de ligar para os Bombeiros. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, pontas de lança do Grupo Nun'Álvares, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os comediantes avulsos, repentistas, atacando pelo soleno. As malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite, mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Que rica terra! Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e miúde militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante a esse respeito. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada. Eram uns tontos, mas também uns pontos. Como aquele ilustre industrial fafense enquanto jovem que veio de férias do Ultramar e, palavra de honra, a guerra teve de parar até que ele regressasse ao mato. Raul Solnado, na verdade, não contaria melhor...

P.S. - Versão corrigida e aumentada, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Piada.

Há-os com piada, há-os...

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Gorilas da Bruna

Bruna é uma youtuber bastante influencer. Elegante, bonita, regularmente recauchutada, famosa por ser famosa, esbanja sensualidade por tudo e por nada e enriqueceu por causa disso. Bruna mal pode sair à rua como as outras pessoas, isto é, põe um pé fora da porta a caminho da piscina por exemplo em Ibiza e multidões de adoradores caem-lhe em cima. Bruna tem milhões de seguidores. De perseguidores. Para fazer uma vida normal, viu-se até obrigada a contratar dois possantes seguranças, ou guarda-costas, à Kevin Costner, ou gorilas, como também se diz, que não a largam um segundo e vão com ela a todo o lado, inclusive à casa de banho por exemplo nas Maldivas. São conhecidos como os gorilas da Bruna.

P.S. - Hoje é Dia Mundial das Redes Sociais.

domingo, 29 de junho de 2025