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Foto Tarrenego! |
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Redacção: As orelhas
As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é. As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se puxar as orelhas. Hoje em dia é proibido puxar as orelhas nas escolas, só se for aos professores. Os puxões de orelhas aos professores são gravados no telemóvel e mandados, com uma grande risota, para o YouTube. Das escolas saem cada vez mais orelhudos. E entram no YouTube.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque estão a dizer bem de nós; se for a esquerda, é porque nos estão a rogar na pele. Se arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros. As orelhas também deitam fumo sem fogo, pelo menos nos desenhos animados.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o músculo mais famoso do mundo, à pala do Vasquinho da Anatomia. As orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação. Em tempos de crise como os que vivemos recomenda-se com molho-verde.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às orelhas. Há governantes que não são governantes, porque não ouvem. Por exemplo: as orelhas dos alegados presidentes dos Estados Unidos da América e do Brasil são orelhas a fingir, orelhas de mercador. As orelhas do deputado Ventura, outro por exemplo, são orelhas de burro. Eu gosto muito de orelhas e tenho duas. De momento.
Em memória da burra do Reigrilo
Vou directo ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Este ano não há 16 de Maio, o mês é manco derivado ao coronavírus, as Feiras Francas serão certamente assinalados com uma cerimónia simbólica e engravatada, mas outras burrices não. Nem uma corridinha "de cavalo a passo travado", porventura protagonizada por cavalgaduras de salto alto, que eu já critiquei mas que agora até toleraria. E principlamente burros é que nada. E logo nos tempos que correm e em Fafe. Tempos e sítio de fartura, não dá para perceber. Até parece: deixei a terra e agora não há burros em Fafe? Seria eu o último? Pois se calhar.
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim
senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores,
que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo,
chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como
dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta.
Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia,
ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem
por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a
espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos
Olímpicos e os donos irremediavelmente de focinho no chão. Ao Império
regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era
discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de
tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e
chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as
pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham
terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados,
mantinham o
fair play, viravam as costas à confusão e iam
procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito.
Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os
argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e
depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor
vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida,
porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns
passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia
vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os
burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes.
Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da
Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não
são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem
inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo
tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão
teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu
nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco
do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a
burra, que o levava a casa,
submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e
chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo
e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro
histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono
pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente
decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da
populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do
Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que
apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma
e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali
mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.
Pois agora nada. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se
divertir à brava com a corrida de asnos. Mas ao que eu vinha: não sei o
que se passa com Fafe, que lhe deu para inventar tradições, como se as
não tivesse, verdadeiras, antigas, genuínas e únicas. Fafe perdeu o
sentido. Fafe da segunda década do século XXI tem uma linha de montagem
de "novas" tradições, trabalha a todo o vapor, borbulha de
"cosmopolitismo", e se calhar está a fazer bem, embora o povo não saiba
ou não faça caso. Eu vejo as "iniciativas", eu vejo as fotografias
oficiais e assassinas, e na plateia - apenas duas ou três filas mal
vestidas - estão lá só e sempre os quinze do costume. Então onde está
Fafe?
Por outro lado, dá-me pena que a minha terra (ou quem manda na minha terra) tenha vergonha da Justiça de Fafe.
Dá-me pena que Fafe tenha vergonha dos seus burros. Como se alguém que
de momento pode e manda quisesse varrer para debaixo do tapete de
pelúcia a memória (e a história) mais terra-a-terra de Fafe, "para não
parecer mal" aos senhores de fora e para parecer bem na televisão.
Enfim, uma jericada...
P.S. - Hoje, 8 de Maio, é Dia Internacional do Burro.