O trabalho das nossas mãos
Eu era novo e tu simulavas
tardes imóveis à porta do nosso medo
nas mais difíceis em que te ocupavas com gestos
e uma invencível entrega te
fazia invejar as chaminés e os seus fumos
tu, o teu sangue crepuscular, dissolvia o meu
remorso de ter nascido e
dissolvia o pez que os outros colavam ao nosso corpo.
O teu gesto de molhar a luz na tua pele disfarçava
com cuidado qual-
Quer asa de pecado.
O nosso receio não era já das cinzas que nos apoucam. A
limpidez do Céu,
trabalho das nossas mãos, entreabrira-te os lábios
doutra sede, permanente como a chuva.
Eu era novo e tu simulavas os meus dedos desfolhando-se.
Porque o nosso peso era de símbolos,
decidiste criar outros.
A dormir os nossos frutos de alegria e
nunca ninguém nos importunou
com tarjas tristes à nossa porta.
A viver refizemos as coisas e
o seu gume, na evidência do que existe.
Despias sorridente, deslumbrada, aquele quê de
ausente na carne das estátuas,
e nada que não fosse exacto turbava os teus olhos.
A Terra abria-se para a chuva enquanto a semente do dia
entrava no bico dos
pássaros. Havia um gesto de elevação.
Eu simulava ver um barco incendiado, um mar de
lixívia a arder e as rendas da noite crepitando.
Ouves ainda o rumor das estrelas de que, nos
declives, dependiam nossos passos?
Um pedestal de ócio sustinha as estátuas do vale,
inertes de desterro, todas de rosto
semelhante, existindo de ausência erguida.
Nessa hora o linho que nos cobria tinha qualquer
coisa de feroz e reclamava sangue.
O branco ensinou-nos a espada. A espada a coragem
de a saber inútil.
Um dia disseste a fitar os olhos de imensas coisas -
que ao menos nos
salvemos nós! - dói-me o corpo de esperar...
António Dacosta
(António Dacosta nasceu no dia 3 de Novembro de 1914. Morreu em 1990.)
Sem comentários:
Enviar um comentário