Foto Hernâni Von Doellinger 
Quitério, que também não tem emprego, já estava farto de armazenar cotão nos bolsos e de jogar à sueca no Jardim do Marquês. Portanto resolveu começar a contar coelhos no Parque da Cidade. Uma actividade por certo ainda não remunerado, é preciso que se note, mas que o nosso homem tem uma enorme fezada de que virá a sê-lo a breve trecho, na sequência do projecto que conta apresentar antes do Natal ao Dr. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, e que, no âmbito do Quadro Comunitário de Apoio Portugal 2020, vai enviar sem falta às primeiras horas do próximo dia 1 de Janeiro ao ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, a ver se já apanha também o Quadro Comunitário de Apoio Portugal 2021, que é preciso marcar lugar. Entretanto mandou o currículo para a National Geographic. Se nem sequer acusarem a recepção, é sinal de que a conceituada revista já passou para as mãos de patrões e editores portuguesa, o que é bom para o País. 
Todas as manhãs, depois de   espreitar a primeira página de O Jogo, Quitério arranca para o Parque da  Cidade, bloco de notas, lápis e maçã em punho. A maçã é muito   importante, porque às vezes dá-lhe fome.
Quitério olha e vê com olho  clínico, hospitalar, regista, compara, assinala as diferenças e as similitudes,   escreve sessenta vezes a palavra similitudes porque gosta muito dela, desenha  gráficos e tabelas, depois deita tudo fora e remata com a inconfidência  da notazinha pessoal. E sempre em horário completo. Por isso, ele é  hoje  em dia e sem favor a voz mais autorizada para dissertar sobre a   problemática do coelho nacional, ao qual (fruto de uma lamentável   confusão fonético-etimológia) atribuiu o nome científico de Cunnilingus Lusitannus, exactamente para o diferenciar do chamado coelho comum, que os especialistas denominam de Laparus Normallissimus. Os especialistas são ele.
Mas não se cuide que é tarefa fácil, ofício para paisanos: "Com os coelhos, como em tudo na vida, há dias e  dias". A frase não é minha, saiu da sábia pena de Quitério, que às  vezes  fecha a loja sem ter visto um coelho que seja, ou uma coelha, vá  lá,  para na vez seguinte ter que se desunhar com os verbetes de mais de vinte  avistamentos no breve espaço de um quarto de hora.
"A ciência tudo explica”, costuma dizer Quitério, batendo com o lápis no bloco de apontamentos. "E está aqui tudo"...
Segundo Quitério, aos sábados de manhã ninguém põe a vista em cima do CL - passemos a chamar-lhe CL,  afrontando embora o rigor da ciência, mas precatando compreensíveis   susceptibilidades. O especialista defende que "esta é a prova provada de  que o coelho nacional costuma passar a noite de sexta-feira nos copos  e/ou no sexo". E sexo, com os coelhos, já se sabe como é...
Outro   resultado do estudo, ainda segundo Quitério: "O coelho nacional almoça   em casa. Entre o meio-dia e a hora e meia da tarde, não há nem um para   amostra em campo aberto. O Lusitannus,  como também é tratado entre amigos, está à mesa com a família, não tem  graveto para mais. Ou então foi para a praia, que é de borla e ali ao  pé".
Interessante curiosidade: com mau tempo, chuva principalmente, o coelhame   vem todo cá para fora. "Conclusão a tirar: as casas metem água". Um   reparo que Quitério já antecipou em pré-relatório enviado há coisa de  três semanas aos serviços municipais de habitação.
Quitério tem tudo registado.  Ele conhece-lhe os hábitos, as suas idiossincrasias (e escreve   idiossincrasias mais cinquenta e nove vezes), ele até já traçou o perfil psicológico   do CL, bicho assustadiço e   campeão de atletismo. E no entanto não há dia em que o nosso cientista  não se apanhe surpreendido por um novo ângulo, pelo nunca visto ou cogitado.
Ainda  anteontem, por exemplo: estava Quitério analisando, de perto, o   comportamento de um belo exemplar, preto e branco, malhadinho, quando...
(o melhor é ser o próprio Quitério a contar)
...  "a minha atenção se desfocou por uns milésimos de segundo na pista de  um par de mamas que passava por mim todo saltitão. Foi coisa de   milésimos de segundos, palavra de honra! Quando torno à procura do   láparo, já ele lá não está. Bateu asas e voou"...
(Ora bem:   impõe-se aqui um novo entre parênteses, desde logo para pedir desculpa   ao leitor acidental por esta contumaz fraqueza de Quitério pelos feminis  seios, a que o autor do texto é obviamente alheio, mas também para dar  nota da camada de cepticismo com que esta inesperada revelação foi   acolhida na mesa de café onde ele costuma calistar. Foi um torcer de   nariz geral e o mete-nojo do Silveira ainda torceu um tornozelo, só para  dar nas vistas.)  
terça-feira, 22 de setembro de 2020
Os coelhos não se evaporam. Voam!
E  Quitério, ofendidíssimo: - Mas estão a pôr em dúvida a seriedade do  meu  trabalho? Eu lido com  as hipóteses, eu verifico as evidências. Então como é que explicam o   desaparecimento do coelho? O coelho evaporou-se, não? Ridículo! Toda a   gente sabe que os coelhos não se evaporam. Bateu asas e voou, foi o que  foi.
 
P.S. - Texto publicado originalmente no dia 1 de Julho de 2011. O primeiro número da National Geographic Magazine foi publicado no dia 22 de Setembro de 1888.
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