quarta-feira, 5 de junho de 2019

Agustina, a jornalista

Hoje, que já ninguém fala de Agustina, falo eu. Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do gabinete da direcção, para poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha encarreirada que era preciso saber.
Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que era e ainda é campeão.
Agustina deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela renúncia da directora, acabou por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho.

2 comentários:

  1. Hernâni meu companheiro, ainda bem que nos contas essa "estória" vivida no PRIMEIRO DE JANEIRO. A Genial e já saudosa escritora Agustina Bessa-Luís não tinha jeito para o cargo que lhe "impuseram"(!?): mandar o Chefe de Redacção falar com ele mesmo e querer que a Administração se demitisse, não sabendo que, naquele Jornal, os administradores não se demitiam, "morriam agarrados à secretária!" (de madeira, quero eu dizer).
    Parabéns meu irmão por este pedaço de Prosa.

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