De resto, a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à
beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom
senso, e distrair-me assim com o espetáculo da parede sempre branca e sempre
imóvel, a dois palmos do meu nariz. Livros eu não tenho para ler no momento, nem
eles dão coisa que preste e que me faça mais sábio do que sou, pelas amostras que já
tive nestes últimos tempos (A Bíblia que me deram a ler era exatamente igual a todas
as Bíblias que eu já conhecia antes de vir para cá, e o romance policial que de certa
feita me emprestou a empregada trazia uma história ingênua e fácil de ser
desvendada, como pude verificar logo pelas últimas páginas.) Violão também não
tenho, nem piano, nem saxofone, de maneira que a chuva ainda é a melhor coisa que
me poderia acontecer nesta noite sem mês e sem ano, já que as paredes brancas e
iguais já não me oferecem segredo nenhum, à força de eu me postar diante delas
como diante de um espelho.
Exatamente: a noite foi feita para os galos dormirem e os insones roerem a sua insônia. Roerem - não disse bem?
"A Lua Vem da Ásia", Campos de Carvalho
(Campos de Carvalho nasceu no dia 1 de Novembro de 1916. Morreu em 1998.)
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