Cheguei muito tarde ao dentista. Já passava dos quarenta. Evidentemente
não sou exemplo para ninguém, também neste departamento, mas a verdade é
que, apesar de tantos anos de aparente desmazelo odontológico, eu tinha
uma cremalheira que era um mimo - foi o que me disse o doutor, muito
admirado, quando lhe arreganhei a tacha pela primeira vez. Palavras para
quê? Eu usava pasta Pasta Medicinal Couto. Os meus problemas com os dentes começaram, portanto, quando fui ao dentista.
E estreei-me em grande, numa célebre extracção de um siso, que, não é
para me gabar, foi uma desgraça. O dente estava muito apegado a mim,
eram décadas de convívio e recusava-se a sair, coitado. Anestesia atrás
de anestesia, o dentista escarafunchava e escarafunchava, puxava e
puxava, pedia desculpa, nunca tinha acontecido, inventava alavancas que
não alavancavam nada, fazia o pino, o quatro e o oito, tentou o
flique-flaque à retaguarda e o mergulho empranchado de braços abertos,
escarafunchava e puxava, o homem suava copiosamente e eu sem guarda-chuva, parava
para se desfazer das cambras, ralhava com as afogueadas assistentes que pareciam
baratas tontas, pedia desculpa, nunca tinha acontecido, e
elas, quase em lágrimas e em coro: nunca tinha acontecido, mandou vir
um escadote, a escada Magirus dos Sapadores, uma marreta da obra em
frente e o Regimento de Artilharia da Serra do Pilar, por esta exacta
ordem, escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, desculpe, nunca
tinha acontecido, e nada. Que daqui não saio, daqui ninguém me tira,
insistia o filho da puta do dente, agarrado à gengiva como uma lapa, e
já me estava a meter nervos.
Eu era uma poça de sangue. A minha boca era já duas, derivado ao
escarrapacho forçado. Tinha a boca pior que o chapéu de um pobre - e
foi ali que eu percebi na carne o significado da infeliz expressão. Se
eu pudesse falar, gritaria: chamem-me um carro!, mas eu não podia falar,
porque não sentia a boca e isso até era do mal o menos.
(Por outro lado, o dentista passa muito bem sem a nossa opinião. Já
repararam que o dentista só faz perguntas depois de nos atafulhar a boca
com metade dos móveis do consultório e a mangueira do jardim?
Respondemos como? Só se for pelo nariz, mas isso é número arriscado e
praticável apenas em caso de profunda constipação. E já deram fé que a
gente vai lá queixar-se do dente de baixo e o dentista trata do dente de
cima? E que geralmente faz bem?)
O dente cedeu, por implosão controlada, ao fim de uma manhã inteira de
pancadaria. O dente era eu. Eu era um destroço, um sobrevivente inesperado de Alcácer Quibir. Vi-me ao espelho: tinha os lábios esgaçados de orelha a orelha,
parecia o Joker do Jack Nicholson. Para me confortar, o dentista
disse-me que ainda ia ficar pior. E ficou. No dia seguinte: os cantos da
boca em ferida, a cara feita num bolo, inchada e negra.
Por causa da dose cavalar de anestesia, andei semana e meia a babar-me e
com um falar esquisito. A minha mulher queria internar-me. Safei-me por uma unha
negra à consulta externa do Magalhães Lemos.
Mas isso passou. A sintomatologia física desapareceu. A memória da
carnificina é que não. Padeço de stress pós-traumático. Ainda hoje é uma
tortura ir ao... barbeiro.
Entro em pânico. Estão a ver? A mesma espera, a mesma televisão ligada
na Praça da Alegria, a mesma bata branca, a cadeira, a babete, os
utensílios cromados, pontiagudos e cortantes, o zzzzzzzzz assobiado do
secador que parece o zzzzzzzzz assobiado de uma broca, a televisão
ligada na Fátima Lopes, estão a ver? Estão a ouvir? Estão a perceber a
minha agonia?
Quer-se dizer: houve aqui uma transferência qualquer que eu não sei
explicar. Porque com o meu dentista corre tudo muito bem, farto-me de o aconselhar a toda a gente. O
sanguinolento episódio do dente do siso não passou disso e ganhei esta
bonita história para contar. Para a semana vou lá outra vez (a terceira,
já este ano) e portanto adeus até ao meu regresso.
Sem comentários:
Enviar um comentário