O cigarro e outros vícios
Afinal eu sou aquele que pelos nove-dez anos ia fumar para trás do 
Jardim do Calvário, o sítio de Fafe onde se faziam as coisas feias, e 
não me queixava de segregação, posto que auto-imposta. Também não me queixava 
porque não era eu quem pagava o meio maço de Definitivos que ali 
queimávamos num fósforo, antes que alguém nos visse. Depois ia-me 
confessar. Porque Deus vê tudo e fumar era um pecado muito grande, um 
dos maiores logo a seguir à masturbação.
Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.
Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.
Já repararam, os que sabem de Fafe? O Jardim do Calvário, incluindo as suas impudicas traseiras, está praticamente a meio caminho entre os confessionários da Igreja Nova e os confessionários da Igreja Matriz. Quando Deus quer, realmente...
Foi comprar tabaco e não voltou
Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas 
palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos
 os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não 
voltou.
Maus hálitos
Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os testículos...
Os que deixaram de fumar 
Bonifácio
 Terrafunda era coveiro no cemitério da Junta de Freguesia de Sabugal do
 Meio há mais de quarenta anos. Funcionário exemplar, pai de duas 
famílias. Um dia, para o que lhe havia de dar, resolveu dividir o 
campo-santo em dois talhões devidamente assinalados, um para "Fumadores"
 e outro para "Não fumadores", como nos aviões antigamente. A coisa veio
 nos jornais, quer-se dizer, no Correio da Manhã. Anacleto Boavida, 
jovem presidente da autarquia, passou-se dos carretos, instaurou 
inquérito e competente processo disciplinar, meteu advogado e 
testemunhas, imagens do YouTube, e o velho coveiro foi inapelavelmente 
remetido para o olho da rua, por indecente e má figura, isto é, 
despedido com justa causa. "É que não se admite, com os mortos não se 
brinca - justificava o fulgurante autarca, alto e bom som, para quem o 
quisesse ouvir, que era a esposa. - Aquela gente, se lá está, é porque, 
por definição, deixou toda de fumar."
Algo de definitivo
 Havia algo de definitivo no que ele dizia. Ele dizia: - Já não se fazem cigarros como antigamente...
Amar é apanhar piriscas, nomeadamente
Seria um casal patusco, se não fosse trágico. Desengonçados ambos,  
cómicos no vestir, feiinhos graças a Deus, testo e panela emparelhados  
de encomenda. Cirandam pelas ruas de Matosinhos todos os dias, de  
manhãzinha à noite, de braço dado, num andar de procissão e olhos  
caídos, passando o chão a pente fino à cata de piriscas reutilizáveis.  
Ele,  posto que zarolho, tem visão de longo alcance ou então algum radar
 que  eu não sei. Vê a beata e faz um gesto com a cabeça. Ela, em 
obediência  canina, dobra-se, apanha a prisca referenciada, entrega-lha e
 corre a  enfiar-lhe novamente o braço, se ele deixar, até à próxima. 
Ele fuma e  ela vai feliz.  Os dois são um filme mudo. Isso, uma fita 
das antigas, num  preto-e-branco fatela.  Digo, seria um casal patusco, 
se não fosse trágico: quando lhe apetece, o filhodaputa bate na mulher.
Era assim. Mas há uns meses que o vejo sozinho pelas esquinas,  
desamparado, perdido, praguejante, dando-se ao trabalho de dobrar a 
espinha se quer  matar o vício. E faço votos para que ela, a senhora, 
apenas o tenha deixado, a ele. O filhodaputa está a ter o castigo
 que merece, e vai de mal a pior, porque Deus não dorme, excepto aos 
sábados. Agora o Governo até as piriscas lhe quer tirar, à força de 
multas. Bem diz o povo na sua indesmentível sabedoria: as desgraças são 
como as calças - vêm aos pares. E ainda por cima os cigarros 
electrónicos.
Update
Já aqui falei dele. Do indivíduo que andava pelas ruas das minhas 
redondezas à cata de piriscas e que, filho da puta, batia na companheira
 que lhe fazia o serviço. A franzina senhora desapareceu de cena. De tão
 sumária e submissa
 que me parecia, temo, sinceramente temo, que lhe tenha acontecido o 
pior, só para não atrapalhar. Mas o bronco continua por aí, agora 
solitário e sempre bandalho, enfim obrigado a vergar a mola se quer 
matar o vício. Com o encerramento coronavírico de cafés e restaurantes, 
no chão da porta dos quais costumava abastecer-se, a vida corre-lhe mal,
 e é o que lhe estimo.
Continua, portanto, às piriscas, no outro dia sem mais nem menos 
malcriou com a minha mulher, que não lhe liga mas tem medo dele, mais 
cedo ou mais tarde vou ter de lhe foder o focinho, ao porco. O indivíduo
 continua às piriscas, que fuma acto contínuo, mas, actualizado com os 
tempos da pandemia, anda de máscara. A máscara padece de evidentes 
sinais de que foi sacada ao lixo. Mas de máscara, o  burgesso. É outra 
limpeza, outra segurança.
Uma questão de respeito
- Nunca fumei à frente do meu pai.
- Porquê?
- Por uma questão de respeito.
- Mas o teu pai sabe que tu fumas?
- Sempre soube. Há que anos...
- E então?
- É uma questão de respeito.
- E o teu filho sabe que tu fumas?
- Claro que sabe.
- E tu fumas à frente do teu filho?
- Claro que fumo. Desde sempre...
- Porquê?
- Porquê?
- Por uma questão de respeito.
- Mas o teu pai sabe que tu fumas?
- Sempre soube. Há que anos...
- E então?
- É uma questão de respeito.
- E o teu filho sabe que tu fumas?
- Claro que sabe.
- E tu fumas à frente do teu filho?
- Claro que fumo. Desde sempre...
- Porquê?
Love is in the air
Parzinho
 de namorados. Romântico e fumador. O rapaz dá uma passa no  respectivo 
cigarro e a seguir lança ao ar uma imensa nuvem de fumo. A  rapariga dá 
uma passa no respectivo cigarro e a seguir o rapaz lança ao  ar uma 
imensa nuvem de fumo. O que é extraordinário.
P.S. - Hoje, 17 de Novembro, é Dia Mundial e Dia Nacional do Não Fumador.
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