terça-feira, 17 de novembro de 2020

Levando para tabaco

O cigarro e outros vícios
Afinal eu sou aquele que pelos nove-dez anos ia fumar para trás do Jardim do Calvário, o sítio de Fafe onde se faziam as coisas feias, e não me queixava de segregação, posto que auto-imposta. Também não me queixava porque não era eu quem pagava o meio maço de Definitivos que ali queimávamos num fósforo, antes que alguém nos visse. Depois ia-me confessar. Porque Deus vê tudo e fumar era um pecado muito grande, um dos maiores logo a seguir à masturbação.
Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.

Já repararam, os que sabem de Fafe? O Jardim do Calvário, incluindo as suas impudicas traseiras, está praticamente a meio caminho entre os confessionários da Igreja Nova e os confessionários da Igreja Matriz. Quando Deus quer, realmente...

Foi comprar tabaco e não voltou
Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou.

Maus hálitos
Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os testículos...

Os que deixaram de fumar 
Bonifácio Terrafunda era coveiro no cemitério da Junta de Freguesia de Sabugal do Meio há mais de quarenta anos. Funcionário exemplar, pai de duas famílias. Um dia, para o que lhe havia de dar, resolveu dividir o campo-santo em dois talhões devidamente assinalados, um para "Fumadores" e outro para "Não fumadores", como nos aviões antigamente. A coisa veio nos jornais, quer-se dizer, no Correio da Manhã. Anacleto Boavida, jovem presidente da autarquia, passou-se dos carretos, instaurou inquérito e competente processo disciplinar, meteu advogado e testemunhas, imagens do YouTube, e o velho coveiro foi inapelavelmente remetido para o olho da rua, por indecente e má figura, isto é, despedido com justa causa. "É que não se admite, com os mortos não se brinca - justificava o fulgurante autarca, alto e bom som, para quem o quisesse ouvir, que era a esposa. - Aquela gente, se lá está, é porque, por definição, deixou toda de fumar."

Algo de definitivo
Havia algo de definitivo no que ele dizia. Ele dizia: - Já não se fazem cigarros como antigamente...

Amar é apanhar piriscas, nomeadamente
Seria um casal patusco, se não fosse trágico. Desengonçados ambos, cómicos no vestir, feiinhos graças a Deus, testo e panela emparelhados de encomenda. Cirandam pelas ruas de Matosinhos todos os dias, de manhãzinha à noite, de braço dado, num andar de procissão e olhos caídos, passando o chão a pente fino à cata de piriscas reutilizáveis. Ele, posto que zarolho, tem visão de longo alcance ou então algum radar que eu não sei. Vê a beata e faz um gesto com a cabeça. Ela, em obediência canina, dobra-se, apanha a prisca referenciada, entrega-lha e corre a enfiar-lhe novamente o braço, se ele deixar, até à próxima. Ele fuma e ela vai feliz. Os dois são um filme mudo. Isso, uma fita das antigas, num preto-e-branco fatela. Digo, seria um casal patusco, se não fosse trágico: quando lhe apetece, o filhodaputa bate na mulher.

Era assim. Mas há uns meses que o vejo sozinho pelas esquinas, desamparado, perdido, praguejante, dando-se ao trabalho de dobrar a espinha se quer matar o vício. E faço votos para que ela, a senhora, apenas o tenha deixado, a ele. O filhodaputa está a ter o castigo que merece, e vai de mal a pior, porque Deus não dorme, excepto aos sábados. Agora o Governo até as piriscas lhe quer tirar, à força de multas. Bem diz o povo na sua indesmentível sabedoria: as desgraças são como as calças - vêm aos pares. E ainda por cima os cigarros electrónicos.

Update
Já aqui falei dele. Do indivíduo que andava pelas ruas das minhas redondezas à cata de piriscas e que, filho da puta, batia na companheira que lhe fazia o serviço. A franzina senhora desapareceu de cena. De tão sumária e submissa que me parecia, temo, sinceramente temo, que lhe tenha acontecido o pior, só para não atrapalhar. Mas o bronco continua por aí, agora solitário e sempre bandalho, enfim obrigado a vergar a mola se quer matar o vício. Com o encerramento coronavírico de cafés e restaurantes, no chão da porta dos quais costumava abastecer-se, a vida corre-lhe mal, e é o que lhe estimo.

Continua, portanto, às piriscas, no outro dia sem mais nem menos malcriou com a minha mulher, que não lhe liga mas tem medo dele, mais cedo ou mais tarde vou ter de lhe foder o focinho, ao porco. O indivíduo continua às piriscas, que fuma acto contínuo, mas, actualizado com os tempos da pandemia, anda de máscara. A máscara padece de evidentes sinais de que foi sacada ao lixo. Mas de máscara, o burgesso. É outra limpeza, outra segurança.

Uma questão de respeito
- Nunca fumei à frente do meu pai.
- Porquê?
- Por uma questão de respeito.
- Mas o teu pai sabe que tu fumas?
- Sempre soube. Há que anos...
- E então?
- É uma questão de respeito.
- E o teu filho sabe que tu fumas?
- Claro que sabe.
- E tu fumas à frente do teu filho?
- Claro que fumo. Desde sempre...
- Porquê?

Love is in the air
Parzinho de namorados. Romântico e fumador. O rapaz dá uma passa no respectivo cigarro e a seguir lança ao ar uma imensa nuvem de fumo. A rapariga dá uma passa no respectivo cigarro e a seguir o rapaz lança ao ar uma imensa nuvem de fumo. O que é extraordinário.

P.S. - Hoje, 17 de Novembro, é Dia Mundial e Dia Nacional do Não Fumador.

Sem comentários:

Enviar um comentário