segunda-feira, 28 de abril de 2014

O meu barbeiro

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa. Entro, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito o caminho para apontar se é só barba ou é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos.
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos os tomates com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que não vale a pena. Vamos direitos à máquina registadora, espreito a ver se ainda é o mesmo preço, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há quase 30 anos. O meu barbeiro já sabe: som da televisão mais baixo quando chego, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Somos amigos, mas nada de convívio. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?

Não sei o que deu ontem ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política. O que até me veio a calhar para continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, e eu nada. Não sei porquê, mas para aí há coisa de mês e meio que não gosto de falar de futebol. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Duarte Lima. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E a noticiazinha do jornal, os dois larápios que foram apanhados e quase linchados pela população ali para os lados de Guimarães? Também não. Mantive-me de boca fechada, até para não ter de lhe explicar o que está por detrás de acções e notícias daquelas.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro (e eu logo a pensar: vem-me este agora falar da emoção da visita de terça-feira à campa da mãezinha, coitadinha...), arrancou um grande suspiro, dizia eu, suspendeu a tesoura num gesto teatral e atirou-me, certeiro : - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Assim já nos entendemos. Tivemos ali conversa até à hora do tacho.

(Texto escrito e publicado no dia 4 de Novembro de 2011. Junto-lhe hoje a fotografia, que apanhei na Foz. Quem tiver vagar, pode ler mais do mesmo em O meu barbeiro 2.)

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"O Meu Barbeiro" é também título de um divertidíssimo livro do jornalista e escritor português Carlos Pinhão (1924-1993):

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