Gosto do Natal. Isto é, não gosto do Natal, mas a minha mulher e o meu 
filho gostam muito, e portanto eu gosto do Natal: temos de ser uns para
 os outros se queremos manter acesa a lareira da felicidade familiar, ou
 o radiador a óleo ou o aquecimento central, cada um governa-se conforme pode. E cá em casa o 
Natal começa cedo: este ano, por exemplo, começou na passada quinta-feira, e coube-me a mim a honra de abrir a época, introduzindo 
de surpresa uma cassete (sim, uma cassete) de música jingle bells na 
portinhola do rádio da cozinha. Play, pause, ff, rew, stop, em grande 
estilo, uma e outra vez, e dezenas de vezes, e centenas de vezes, pelo 
menos até passar o Dia de Reis, já no próximo ano, se por acaso a velha 
fita não rebentar antes. Quanto aos enfeites e iluminações correlativas, já estão no activo desde meados de Novembro!
Gosto do Natal, 
dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui
 que eu deveria ter começado, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se
 sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um 
equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24.
 A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é 
em Dezembro, e no entanto a cantiga diz que "em Maio pode ser"...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Não acredito na Popota nem na Leopoldina, mas também nunca acreditei no 
Pai Natal, embora que o há há, ou ho ho, e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos 
euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me 
pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus sim, diz-me respeito, e ainda hoje 
acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o 
meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par 
de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne 
deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o
 meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera,
 em França, provavelmente para nos doer menos, e doeu ainda mais. Em França é onde nascem 
os meninos, e acho lamentável que o meu pai tenha sido dado à troca...
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas bêbadas, as músicas tão 
tlim-tlim-tlam, o almoço ou jantar com os amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do
 Banco 
Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, os votos de, os programas de 
televisão marca Uaitecristmas, as greves nos hospitais, nos tribunais e 
outras que tais, as estradas que desaparecem engolindo pessoas, o circo,
 muito circo, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente
 da República, o bispo do Porto a dizer que o Estado não é pessoa fiável, mas a Igreja é e vai ao cu dos meninos de que deveria tomar conta, a comida, a comida, a comida, 
tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
No Natal de aqui há cinco anos, não vai assim tanto tempo, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, 
para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. 
Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão 
vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo 
de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de 
gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe
 nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a 
minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os 
beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero 
dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago 
mais a alma. E, como num filme de reprise, tornou-me à casinha do Santo Velho, à 
roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto,
 na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao 
meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade, quem me dera lá! E de repente topei-me de olhos humedecidos, 
turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada 
na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: 
caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens 
vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
No ano seguinte foi canja e não chorei. É curioso: a canja não puxa ao sentimento. 
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