sexta-feira, 1 de julho de 2016

Zélia Gattai 3

Tudo arrumado, malas prontas, o apartamento com ar de abandono. Partiríamos no dia seguinte para o Rio de Janeiro. Jorge acabara de ser eleito deputado federal por São Paulo.
Convocado meses antes pelo Partido Comunista, do qual era membro, foi-lhe comunicado ter sido seu nome um dos escolhidos para compor a chapa de candidatos do partido a deputado federal por São Paulo, nas eleições marcadas para 2 de dezembro daquele ano de 1945. Jorge relutara em aceitar, não nascera para político profissional, a atuação parlamentar não o tentava. O que desejava era escrever - sua única vocação -, viajar, ser dono de seu tempo. Não conseguira, no entanto, safar-se da tarefa; os argumentos apresentados convenceram-no: seu renome de escritor ampliaria a chapa, sua popularidade arrastaria votos. Concordou em ser candidato, com uma condição: eleito, renunciaria em seguida ao mandato, cedendo a cadeira no Parlamento a seu suplente.
Os dirigentes tinham razão: Jorge foi eleito com votação excelente; pessoas que não votariam em outro candidato comunista votaram no escritor. Detalhe curioso: obteve a maioria dos votos da colônia judaica, apesar de concorrer também a uma cadeira no Congresso Nacional um judeu ilustre, Horácio Lafer.
Jorge esperava apenas chegar ao Rio para concretizar sua renúncia. Em seguida partiríamos para o Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, em necessitadas e merecidas férias.

Na viagem para o Rio faria minha estreia em avião. Jorge me perguntara se estava com medo de voar e eu lhe dissera que não tinha medo de avião nem de nada; nem mesmo de enfrentar Lalu, acrescentei. Lalu era a forma carinhosa com que marido e filhos tratavam dona Eulália Leal Amado, mãe de Jorge. Já sabia tudo a seu respeito de tanto ouvir falar; tudo e mais ainda, pois seu filho mais velho divertia-se em me assustar:
- Lalu é fogo! - dizia ele. - Vá se preparando! Matreira, sabida como ela só! Tem sangue índio; é desconfiada e curiosa... se prepare para passar no exame... Vai te espremer, te apertar no torniquete, querer saber tudo de tua vida...

"Um Chapéu para Viagem", Zélia Gattai

(Zélia Gattai nasceu no dia 2 de Julho de 1916. Morreu em 2008.)

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