quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Dá licença de ir lá fora?...

Eu, que levo as palavras à letra, devo confessar que "situação de calamidade pública" me aflige muito mais do que "estado de emergência", mas dizem-me que calamidade é melhor do que emergência, e contra isso nada, porque quem manda pode, ainda que possa não saber o que diz ou faz nem ter sequer vaga ideia da língua portuguesa. Em todo o caso: o melhor da calamidade que é o estado de emergência que impera em Portugal é que os urinóis públicos permanecem abertos - urinóis, retretes, WC, lavabos, casas de banho, casinhas, latrinas, sanitários, sentinas e até privadas, todo um vasto sector -, e isso, sendo importantíssimo para a retoma da economia nacional, interessa-me particularmente por outras certas e determinadas razões, de emergência e de calamidade, que passo a explicar:

Mijar no Terrace custa pelo menos euro e meio
Aflitíssimo, entrei no Terrace e pedi: - Por favor, dá-me licença de utilizar a casa de banho? -. Estava preparado para receber uma de duas respostas, "sim" ou "não", mas deram-me a terceira: - Vai tomar alguma coisa? - Eu disse que beberia uma água e tornei a pedir: - Por favor, dá-me licença de utilizar a casa de banho? - Que assim sim. Utilizei então a casa de banho, isto é, mijei, fiz uma descarga de autoclismo, limpei do chão duas pingas que não souberam o caminho e lavei as mãos. Evidentemente eu poderia sair da casa de banho do Terrace e vir-me embora, mas fui tomar a água contratada. Aproveitei para explicar calmamente ao jovem e educado funcionário que um dia, quando ele for mais velho, talvez da minha idade, vai ficar tipo fodido por lhe fazerem a ele o que ele me fez a mim. O jovem e educado funcionário disse-me que é desta maneira que ali se trabalha, no Terrace, por ordens da gerência. Paguei um euro e meio pela água e estou arrependido: não sei se o dinheiro chegava, mas, em vez de beber a puta da água, devia ter comido um biju. A água pôs-me outra vez à rasca na viagem de metro da Trindade até Matosinhos. Vim a correr para casa e mijei-me pernas abaixo mal consegui abrir a porta...

O Terrace é um café situado no gaveto das ruas de Fernandes Tomás, da Trindade e do Estêvão, nas traseiras da Câmara Municipal do Porto. E tem gerência.

Quem quiser mijar em Campanhã, paga!
Quem precisar de mijar ou cagar na Estação de Campanhã tem de pagar 50 cêntimos. Cinquenta cêntimos são o que são e diz que a medida já lá está há ano e meio. Eu fiquei admirado. Fui ontem a Campanhã, estava à rasca e, porque meio euro me faz diferença, mijei cá fora contra o muro como toda a gente. Fiz na parede o tradicional desenho "Ide... para... a... puta... que... vos... pariu!... ..." e saiu muito bem, não é para me gabar. Peço desculpa ao segurança que toma conta do torniquete - sim, há um torniquete e um segurança a tomar conta do tornique da retrete, mas apanhei-o distraído - e peço desculpa ao senhor e à senhora do rolo de papel higiénico que ficaram no retrato e não queriam.

E aviso o senhor Manuel Queiró, inexplicável presidente da CP: se um destes dias lhe cagarem à porta, mas cagarem com todos os matadores, não fui eu. Gostava de ter sido, até porque é tradição familiar, mas não fui. Moro em Matosinhos, não tenho dinheiro para deslocações de longo curso. O comboio e necessidades correlativas estão pela hora da morte.

Para cus quadrados
Saía muito pouco de casa. Uma dia levaram-no ao restaurante da moda e ele ia morrendo de susto quando precisou de ir à casa de banho e descobriu a sanita rectangular. Pensou aflito, ensarilhado nas calças, antes de fugir pela janela, redonda por sinal: - Será que os cus mudaram de feitio e o meu não foi informado?...

A influência dos astros na vida das pessoas
Perguntavam-lhe pelo signo e ele respondia, todo lampeiro: - Sanitário. Efectivamente, passava o dia na retrete.

Apertos de um 25 de Abril
Fui ver o 25 de Abril ao Porto. Porque, para quem não tem mais nada que fazer e é teso, o Porto é um sítio porreiro para se ver 25 de Abris e não é preciso comprar bilhete. No Porto há milhões de camones de passagem, milhares de portugueses desempregados coçando colhões e esquinas, trezentos e cinquenta portuenses residentes e uma praça e uma avenida destinadas ao 25 de Abril, às greves gerais, ao 1.º de Maio, aos carteiristas e aos vadios em geral, as quais, praça e avenida, são emprestadas pelo Sr. Pinto da Costa quando o Futebol Clube se esquece de ser campeão - o que em democracia é raro e altamente suspeito.
O 25 de Abril correu muito bem. Vintecincodeabrilou-se ali com grande pertinácia e depois acabou. Acabou, mas eu, que sou de lágrima fácil, estava com uma vontade de mijar que já não era só vontade, era um estado de emergência, e desatei a correr como um tolinho para o WC sob as escadinhas da Rua 31 de Janeiro com a Estação de São Bento e com a polícia de choque atrás de mim como se eu levasse um engenho explosivo na braguilha. Não levava. Estava apenas à rasca. À rasquíssima. E a retrete estava de portas fechadas. Por causa do feriado.
Que se segue: eu bem não queria, mas tive de ir, com uma mão à frente e outra atrás, às casas de banho da estação propriamente dita. Às tais, às míticas, às suspeitíssimas. O que se passou lá dentro não interessa, apenas faço questão de garantir que saí daqueles apertos com a honra invicta. A polícia, entretanto, desinteressou-me de mim e passou a perseguir um casal de lavradores do Marco de Canaveses que tinha vindo a uma consulta de otorrinolaringologia, ela com a infelizmência de um xaile vermelho às costas e ele com um saco de plástico na mão, sotaque da terra e "cara de marroquino". Nas varandas (ou sacadas, como se diz em Fafe) cantava-se "Grândola, vila morena" com uma afinação de oficina de automóveis. O relógio exterior de São Bento batia as quinze e quinze. A polícia também. Após a sova da ordem, as autoridades verteram nos autos que o perigoso saco continha um cartucho com 250 gramas de sementes de pepino compradas sem guia de remessa na Casa Hortícola do velho Bolhão, um toquinho de chouriço de colorau, meia sêmea, um taparuer com uma cebola da monda rachada em quatro e metida em sal grosso e vinagre tinto e dois olhos de azeite, uma garrafa de cerveja quase vazia de vinho, duas pastilhas avulsas para o enjoo e um canivete belga com seis centímetros de lâmina. Os dois indivíduos, um do sexo masculino e o outro não, entre os sessenta e os setenta anos, foram detidos por posse de arma branca. Os peritos em minas e armadilhas fizeram explodir o resto.

Proibições que são convites
Embora já andassem de Mercedes e/ou BMW, aqui há uns anos os empreiteiros viam-se à rasca para perceberem onde despejar o lixo que faziam nas demolições ou esburacamentos de início de obra. Não havia sítios de lei, largavam-no onde calhava, à noite, e fugiam. Atentas à insustentável situação e superpreocupadas com a defesa do ambiente, as autarquias portuguesas correram a criar uma rede de locais apropriados para o efeito nos montes à roda das vilas e cidades, de norte a sul do País. Em cada um desses locais jeitosos colocaram uma placa que avisava mais ou menos assim: "Proibido lançar entulho neste local. Coima até duzentos contos". E, pronto, os empreiteiros ficaram a saber que era ali que podiam deitar o lixo.

Os meus amigos que batem umas cartas ali em baixo, naquela cantinho abrigado à beira-mar, têm uma preocupação naftalínica que eu compreendo. Arriscar bisca com cheiro a mijo deve ser uma merda. Por isso puseram o letreiro novo, melhoramento infelizmente sem inauguração, mas sinalética em material nobre, upgrade como manda a sapatilha, do cartão canelado para a esferovite, e com uma mensagem indubitavelmente mais assertiva e acutilante. E no entanto, como na história dos empreiteiros, "Atenção! Por favor não urinar neste local, obrigado", se formos a ver, só quer dizer... WC. 

P.S. - Apontamentos publicados originalmente entre Março de 2012 e Maio de 2020. Hoje, 19 de Novembro, é Dia Mundial das Instalações Sanitárias ou Dia Mundial da Sanita.

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