quinta-feira, 7 de julho de 2016

Mário Sacramento

Em tempos que já lá vão, os egípcios adoravam como deuses certos animais, sendo o mais importante o boi Ápis. Mas assim como hoje, para seguir certas carreiras, é preciso um atestado médico comprovativo de que o candidato possui uns tantos atributos físicos, assim também naquele tempo só podia ser Ápis o boi que, sendo negro, tivesse uma malha branca, triangular, na testa. Mal as vacas tinham as crias, os sacerdotes passavam em revista os recém-nascidos. Os que satisfaziam as condições eram apartados, ao atingirem a idade do desmame. Tinham bons pastos e eram incensados e adornados com rosas nos chifres. Mais tarde, realçavam-lhes a importância com colares de prata maciça e doiravam-lhes as pontas. Por fim, atingida a idade do sacrifício, afogavam-nos, em pompa e ritual, numa fonte consagrada ao Sol, e as suas múmias tornavam-se objectos de culto.
Ora havia um pequeno lavrador cuja cerca vizinhava com a do principal santuário em que estas práticas se faziam. Embora pobre, possuía uma vaca, e esta observando da cerca o que se passava nas pradarias do santuário, conheceu o destino que esperava todos os bois promovidos a Ápis. Desde então, sempre que estava para ser mãe, vivia numa ansiedade. E só quando verificava, nascido o filho, que este não tinha os estigmas da divindade, a pobre sossegava.
Até que, uma das vezes, lhes nasceu um bezerrinho negro... com a fatal malha branca na testa! Chorou a triste vaca, nessa noite, o leite duma semana. E estava nisto quando lhe ocorreu uma ideia que logo pôs em prática: arrastou-se até à orla do Nilo, que marginava a propriedade, recolheu uma porção de lama mais pastosa e negra que encontrou e disfarçou com ela a malha branca do seu bebé. Quando, no dia seguinte, um dos sacerdotes veio proceder à inspecção do costume, mirou e remirou e foi-se embora.
Todos os dias a boa da vaca renovava a lama, e por vezes hora atrás de hora, pois o bezerrito gostava de cabriolar, feliz da vida, pelo prado adiante. E assim correu o tempo. Passeando mãe e filho junto à cerca, acontecia o bezerro ficar longo tempo de olhos fixos num dos Ápis, admirando-lhe a majestade. E dizia à mãe:
- Que boa vida a dele! Ó mãe, quem me dera ser Ápis!
[...]

"O Ápis", Mário Sacramento

(Mário Sacramento nasceu no dia 7 de Julho de 1920. Morreu em 1969.)

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