Chamas-me adúltero, traidor, infiel, se calhar mouro, acusas-me de ir às putas nas tuas costas, e isso é uma calúnia muito grande, uma injustiça que eu não mereço, estou aqui que não me deixo mentir. Às meretrizes, querias tu dizer, Glória, às meretrizes, e foi apenas uma vez e não valeu. Eu conto-te, já que fazes questão:
Fui levado ao engano pelo Sarafim, que me telefonou para uma merenda na Baixa, disse-me que íamos comer uma coisinha boa num sítio da Rua de Coelho Neto, sabes como eu sou por petiscos. Fomos. Juro-te que entrei atrás dele e só comecei a desconfiar porque, lá dentro, em vez de me cheirar a bifanas, que era o que me apetecia, cheirava-me a outra coisa. E o balcão era um divã de molas ao léu. Mas a verdade é esta: já lá estávamos, não quis fazer feio nem deixar o Sarafim pendurado, tu é que me estavas sempre a dizer bem dele. Não, não estou a dizer que a culpa é tua, não destroças as minhas palavras.
Que se segue: sentei-me ao balcão, quero dizer, no divã, uma mola ainda tentou fazer-me uma colonoscopia a sangue frio, mas desviei-me a tempo, e dispus-me a ficar ali à espera, porque, já que não havia bifanas, eu não queria nada. Mas o Sarafim, o teu amigo Sarafim - tens razão, desculpa, não é para te ofender -, o Sarafim desata a insistir comigo para eu escolher entre a
Aninhas Mijona e a Lela Moncosa, era o que havia na lista. Sim, dizes bem, ricos nomes, não haja dúvidas. Ainda por
cima, ter de escolher, já sabes como eu sou, deste o exame de admissão ao Liceu que entrei em modo automático, deixo as minhas decisões nas mãos dos outros. Roí uma tarde inteira de angústia, introspectando o cruel dilema: "Ana, ina, não, bate china, bate cão,
fica a Mijona, a Moncosa não. Não vale, não vale, que me enganei outra vez. Ana, ina,
não, bate china, bate cão, fica a Moncosa, a Mijona não"...
O Sarafim, de tesão no ponto, a perder a paciência comigo e com medo de que a braguilha se lhe desmobilizasse, insistia ainda mais na insistência, desculpa-me a insistência neste ponto. Eu, farto de o aturar, estava para dizer, aliás sem convicção, que queria a Moncosa, quando ele me empurrou para os braços da Mijona. Sim, empurrou, Glória. Eu sei que ele não está aqui para o confirmar, mas isto é pela luz que me alumia. Por falar nisso, já veio a factura da EDP? Não, não estou a mudar de assunto...
Ora bem, onde é que eu ia? Já sei: assim que entrei no
quarto, e aquilo era um quarto de um quarto, uma espécie de último terço do terreno mas em quarto, fui barbaramente agredido por um fedor a mictório público que era um ser vivo e tentacular, de ficção científica, um cheirete tamanho que fiquei logo a perceber por que razão é que a menina se chamava Aninhas. O ambiente era de cortar à
faca e embrulhar em papel costaneira para venda a retalho. Cada vez que a
feminil criatura se abanava, o ar, coalhado, avançava em vagas compactas e
sucessivas estatelando-me contra os tabiques do chiqueiro. Não te rias, Glória, que isto é a sério, ainda tenho aqui as marcas nas costelas. E, para piorar o
impossível, a menina era a cara escarrada da minha avó que eu nunca conheci nem
por fotografia, mas são as coisas que nos vêm à cabeça nestas alturas. Não sejas assim Glória, à cabeça da cabeça, é o que eu quero dizer...
Conheces-me como as palmas da minha mão, Glória. Sabes que em ocasiões assim, quando me sinto inapelavelmente
entalado, o meu vocabulário, de costume tão cumprimenteiro, não desfazendo, acaba por
descambar-me para a javardice, desculpa-me a expressão. E foi nesses termos que introspectei,
apreensivo, "Ó que caralho, que não há caralho para ninguém. Não vou conseguir
galvanizar-me".
Diz-me a Mijona: - Anda cá, filhinho, chega-te ao bom. Não tenhas medo, que eu não te como.
Digo-lhe eu, com o polegar e o indicador da minha mão direita esganando-me o nariz e a voz a sair-me na afinação perfeita da Luísa Sobral: -
Faça a fineza de desculpar, excelentíssima senhora. Nem me custa acreditar que
não padeça felizmente de tendências canibalescas, o que é agradával sobretudo
para a minha pessoa, mas a verdade é que eu estou ligeiramente um bocadinho
indisposto...
E ela: -
Deixa lá isso. Eu ameigo-te aqui umas festinhas, filho... Hã?, hã?, que tal?
Gostas? Então? Nada?
Nada!
Nada.
E eu: - Faça-me o obséquio de desculpar, ilustríssima senhora, mas entendo por
melhor retirar-me...
E ela: - Como é que
queres? Diz lá, não te acanhes, que eu já desvirgulei muito homem feito. Vamos embora, meneia-te, rapaz, ou vieste só para gozar as vistas? Olha
que isto está a contar e ainda há muito freguês à porta. Não sejas o meu
prejuízo, diz lá: queres vir-te nas minhas mamas?
E eu: - Muitíssimo obrigadíssimo pela especial deferência, minha riquíssima senhora,
mas isto não é má vontade, eu seja ceguinho. Eu, por mim, bem gostava de
vir-me de qualquer maneira, a geografia, nestas circunstâncias, acaba por ser irrelevante, mas, faça a fineza de
desculpar, não me encontro nas melhores condições. Sempre a considerá-la...
Ao tempo que isto vai. Falso alarme e, para todos os efeitos, já prescreveu. Não olhes para mim com essa cara, Glória, as coisas são como são, não faças pouco. Pareces o Sarafim, o Sarafim também se riu. Mas à conclusão: saí do sítio de Coelho Neto envergonhadíssimo pela momentânea inoperância, de rastos, cheio de fome, sem fôlego que fosse para acrescentar um fingido "Fica para outro dia", e só então troquei o ar dos pulmões. Lado positivo do infausto evento: tinha acabado de bater um dos meus primeiros recordes - cinco minutos sem respirar por cima de água. Ó Glória, podíamos era ir à Conga comer uma bifaninha? Não? Tens a certeza? Pronto, também não é preciso arreliares-te. Mas marchava...
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