domingo, 29 de maio de 2016

Não te armarás em parvo, disse o Senhor

O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo com quase sessenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Imaginem-me: com ex-colegas da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral.
E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso. No ano em que lá cheguei, éramos 136 crianças, havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de ego te absolvo diriam... mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, e não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida...
Porque. Reencontrei-me ultimamente, e gostei no princípio, com ex-colegas do seminário que deram em padres. Há aquela festa inicial, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, superiores, condescendentes e compassivos, perguntam sempre, como se estivessem ensaiados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista, sou casado, sempre com a mesma mulher, o que é um bocado estranho na minha profissão, admito e peço desculpa, tenho um filho com 32 anos que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, saímos de vez em quando para arejar, cada vez menos, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...

Era assim. Mas há dias mudei de táctica, quando voltei a esbarrar com um dos meus que deu em padre. Inquirido sacramentalmente "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo anterior, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...

P.S. - A propósito do título deste texto, eu sei: sou bastante pecador...

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