terça-feira, 16 de agosto de 2011

Denuncie aqui

Foto Hernâni Von Doellinger

São painéis publicitários devolutos e ladeiam a A28. Painéis grandes, espaçosos, cada um deles dava bem para albergar uma família de casal e três filhos se fosse proibido espirrar. Os painéis dizem, em letras garrafais, ANUNCIE AQUI. Mas eu leio sempre DENUNCIE AQUI.
É a mania que tenho de deixar ir a minha imaginação por onde lhe apetecer. Um interessante jogo a que me entrego sem perigos de maior, uma vez que o volante não está nas minhas mãos: não tenho carta, não sei conduzir, portanto não conduzo, mesmo sabendo que, para a maioria dos automobilistas, uma coisa não implica necessariamente a outra.
Mas onde é que eu ia? Ah!, nos painéis, os enormes painéis publicitários e vagos que eu imagino mandados colocar pelo Governo dando-nos a ordem expressa de que nos transformemos numa sociedade de delatores. DENUNCIE AQUI! E imagino o trânsito parado na A28, com quilómetros e quilómetros de filas de gente a guardar vez para chegar ao painel mais próximo e poder enfim oficializar a sua denúncia. A denúncia há muito trazida atravessada na garganta.
E imagino as denúncias e os denunciados. Imagino a denúncia escrita contra o vizinho de cima que arrasta móveis de noite, contra o preço de uma garrafa de vinho, contra o desgraçado que recebe subsídio de desemprego e ainda tem que fazer uns biscates para poder dar de comer aos filhos, contra o marido que bate na mulher, contra a mulher que bate no marido, contra o filho que bate no pai e na mãe que batem um no outro, contra o beijo do casal homossexual, contra os beijos, contra os que estão contra os beijos, contra os espanhóis que passam pelas portagens e não pagam, contra os governantes que fecham os olhos, contra os espanhóis que nos cobram portagens, contra a velhota sem reforma que roubou duas maçãs no supermercado, contra os pretos, contra os brancos, contra o trabalhador que já não aguentava a perseguição de que era vítima no emprego e meteu uma falsa baixa antes que endoudasse de vez, contra a Galp que só faz de conta que baixa o preço da gasolina, contra o árbitro do jogo do Sporting, contra os que estão contra o árbitro do jogo do Sporting, contra a merda do acordo ortográfico, contra a fome e a guerra no mundo (foi uma misse), contra o roubo no IVA da electricidade, contra o colega de trabalho que é do PS, contra o colega de trabalho que é do PSD, contra os partidos, contra os inteiros, contra os canhões...
Imagino que o que o Governo quer é pôr-se a salvo dos rancores, dos ódios, dos desencantos, da frustração, da inveja, da mesquinhez, da intolerância, da desesperança, da impaciência, da ira e da revolta dos portugueses, fornecendo papel e lápis e canalizando para o muro das lamentações da A28 este extremar dos sentimentos populares, inevitavelmente exacerbados em tempos de costas ao alto e bolsos vazios.
E imagino o Governo, pela calada da noite, a aparecer em biquinhos de pés por detrás dos painéis, a lançar a escada e a retirar, sem ler, a enorme folha completamente preenchida de denúncias, a rasgá-la em tirinhas, a queimá-la num instante e a colocar uma nova folha para o dia seguinte.

4 comentários:

  1. Caro amigo, gostei muito deste texto!
    "um país de costas ao alto e bolsos vazios" é de Génio!
    Parabéns
    Gaspar de Jesus

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  2. Eu génio? Isso é o outro.
    Obrigado pela visita e pelo simpático comentário.
    Abraço.

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  3. Pois é!
    Tem o amigo muita razão, só que o outro é Doutor!
    rsrsrs
    Abç
    G.J.

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  4. E eu também, ora a porra! Da mula ruça, mas doutor!...

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