terça-feira, 10 de maio de 2022

Em memória da burra do Reigrilo

Vou directo ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Com a pandemia convenientemente metida entre parênteses, este ano há outra vez 16 de Maio graças a Deus, mas olho para os destaques das Feiras Francas de Fafe, que começam já sexta-feira, e o que vejo, marcada para a tarde do derradeiro dia de folia, de hoje a oito, é a "corrida de cavalo a passo-travado", assim chamada, com hífen e tudo. Apenasmente e, ainda por cima, prova desportiva estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo-travado" com hífen, só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também vão de minissaia e salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe. Parece impossível. Quer-se dizer: vim-me embora, e agora não há mais, é isso?...

Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores, que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e os donos irremediavelmente de focinho no chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada. E nem sei se os camarários doutores da mula ruça acabaram com aquilo de propósito para enxotar dali os nossos ciganos, os bons e honrados ciganos de Fafe que também marcavam o ponto com os seus burros atletas. Não sei, palavra de honra que não sei, mas veio-me agora à cabeça. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos. Mas ao que eu vinha: ignoro o que se passa com Fafe, que lhe deu de repente para inventar tradições, como se as não tivesse, verdadeiras, antigas, genuínas e únicas. Fafe perdeu o sentido. Fafe da segunda década do século XXI tem uma linha de montagem de "novas" tradições, trabalha a todo o vapor, borbulha de "cosmopolitismo", e se calhar está a fazer bem, embora o povo não saiba ou não faça caso. Eu vejo as "iniciativas", eu vejo as fotografias oficiais e assassinas, e na plateia - apenas duas ou três filas mal vestidas, as filas - estão lá só e sempre os quinze do costume, bem vestidos. Então onde está Fafe?
Por outro lado, dá-me pena que a minha terra (ou quem manda na minha terra) tenha vergonha da Justiça de Fafe. Dá-me pena que Fafe tenha vergonha dos seus burros. Como se alguém que de momento pode e manda quisesse varrer para debaixo do tapete de pelúcia a memória (e a história) mais terra-a-terra de Fafe, "para não parecer mal" aos senhores de fora e para parecer bem na televisão. Enfim, uma jericada...

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Maio 2012. E sempre.

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