quarta-feira, 30 de junho de 2021

Os livros

Gosto de afagar os livros que leio. Aliso-os. Cheiro-os. Protejo-os. Guardo-os com mil cuidados. E deixei de emprestá-los! 

P.S. - O primeiro livro impresso em Portugal, o "Pentateuco" em hebraico, foi publicado no dia 30 de Junho de 1487. Encontra-se actualmente no Museu Britânico, em Londres.

A basezinha...

Foto Hernâni Von Doellinger

Própria para operários, dizia o Evaristo

O São Carlos rebentando pelas costuras, o público, conhecedor, finíssimo, lisboeta ate mais não, num delírio de palmas compassadas e gritos comedidos (os chamados gritinhos): - Bravo!, bravo!, bravo!...
O touro, um Miura rondando os 650 quilos, assomou à boca de cena e agradeceu, composto e patriótico: - Gracias, muchas gracias!...

P.S. - O Teatro Nacional de São Carlos foi inaugurado no dia 30 de Junho de 1793.

Lá fora, o sol

Foto Hernâni Von Doellinger

Facebook

Perguntaram-me:
- Mas você não está no Facebook?!...
E eu respondi:
- Eu não. Eu sou casado.

Facebookando

- Comporte-se. Baixe lá essas maiúsculas, que eu não sou surdo...  

O cão, essa espécie de Facebook

O cão é, desde tempos imemoriais, uma das mais consistentes artimanhas do homem para a queca. Está cientificamente provado, todos os dias vejo disso.
Quem tem tesão compra um cão, diz o povo e com razão. Porque o animal - aflito, ziguezagueante, ganinte, de orelhas, rabo e tudo arrebitado -, parecendo embora que sai à rua em busca desesperada por parceira ou parceiro de quatro patas onde possa aliviar o stresse, vem mas é tratar do cio do dono. Ou da dona. Por procuração.
Largado à frente, sem trela, "Vai, Corisco, vai, arranja-me uma gaja! Um gaja boa!", o cão é um batedor sexual para prazeres alheios. Evidentemente tem de se entender com o outro animal, mas isso é truque, pretexto para o dono chegar à dona, como todos sabemos, e depois eles, dona e dono, ou dono e dono, ou dona e dona, depois de conversarem resumida ou detalhadamente sobre raças e rações, que se entendam e se acamem. E muitas vezes entendem-se e acamam-se. Olhemos à nossa volta, sem falsos pudores: quantos namoros e casamentos, que nós tenhamos conhecimento ou desconfiemos, não foram intermediados por cães? Quantos engates e quantas pinocadas avulsas?!...
Passear o cão, é assim que se diz, mas querendo dizer outra coisa. Há até quem dê treino específico ao cão, para loiras ou morenas, gordas ou magras, inteligentes ou burras, e assim sucessivamente e vice-versa. É verdade, ele há cães especialistas. Cães de um certo tipo de caça.
O cão é, portanto, um alcoviteiro. Mas já foi mais, no tempo em que não havia Facebook. No tempo em que se mandava uma cadela ao espaço e a cadela chamava-se Laika. Hoje chamar-se-ia Like. É. As chamadas redes sociais na internet são agora, particularmente para casados, o principal móbil do engate, o menu do sexo à mão de semear, e esta nova realidade veio prejudicar sobremaneira os cães, cada vez mais substituídos, abandonados e abatidos, por aparentemente já não serem precisos.
Correndo o risco de fazer um título à Correio da Manhã, eu diria que o Facebook está a matar o cão. Aos poucos. E, todavia, acho que compreendo esta paulatina porém irreversível substituição do "animal doméstico" pela "aplicação social", porque a verdade é só uma: comprar ou adoptar um cão dá provavelmente mais trabalho e despesa do que criar um perfil no Facebook, sendo que o resultado final é o mesmo. Nestes tempos conturbados, o meu mais descarado elogio vai, pois, para as almas caridosas, afogueados adúlteros, que acumulam cão e Facebook, pelo sim e pelo não, e só temos de lhes agradecer, em nome dos animais.
Salvemos o cão! Porque ainda há algumas diferenças a considerar entre o cão e o Facebook - a não ser que Facebook seja o nome do cão. Para além de que o Facebook, o da internet, tem aquele perigo (há casos!) de a mulher andar a pôr os cornos ao marido e o marido andar a pôr os cornos à mulher - cada qual com o seu perfil secreto, mais ou menos falso e sobretudo "criativo" -, até ao dia em que se engatam como desconhecidos e depois se encontram para o que já sabemos. É então que marido e mulher reciprocamente infidelíssimos descobrem que realmente... foram feitos um para o outro.

P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Janeiro de 2016. Hoje, 30 de Junho, é Dia Mundial das Redes Sociais.

Net

Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Namorado 5

Fábrica

Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto liso e frio dos metais,
a segura confiança

do saber-se que é assim e assim exactamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura,
como na cabeça do engenheiro.
Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:

é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento;

como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.

Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;

as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.

"Aviso à Navegação", Joaquim Namorado 

(Joaquim Namorado nasceu no dia 30 de Junho de 1914. Morreu em 1986.)

Interlúdio fotográfico 347

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 29 de junho de 2021

Berardo e o golpe do baú... à Caixa

"Dever dinheiro a alguém é um factor de risco para a saúde mental", disse uma vez ao Diário de Notícias o psiquiatra Miguel Xavier, director do Programa Nacional para a Saúde Mental . O "c" em "fator" é da minha lavra. E compreendo, dentro do possível, o que o senhor professor doutor quer dizer.
No segundo semestre de 2018 passei por uma crise gravíssima. E nunca me tinha acontecido semelhante. De repente vi-me atolado em dívidas. Por falta de trocos, num dia fiquei a dever doze cêntimos na padaria e no dia seguinte fiquei a dever cinquenta cêntimos na peixaria. Ainda por cima devia também dois euros (um mais um) à latinha do Euromilhões no armário da cozinha, que é para o bacalhau do Natal. O meu nome na praça andava pelas ruas da amargura. Estava desgraçado e não sabia o que havia de fazer à minha vida.
Felizmente Deus é grande, tarda mas não falha, escreve direito por linhas tortas, está em toda a parte, tudo vê e tudo ouve, ouviu-me, olhou para mim, por mim, deu-me a mão, a mão do meu Senhor da Galileia, consegui recompor-me e tenho agora uma vida risonhamente desafogada. Só no passado fim-de-semana achei dinheiro três vezes: dois cêntimos na sexta-feira, dois cêntimos no sábado e um cêntimo no domingo. Evidentemente também me saiu o Euromilhões: quatro euros e noventa e oito. Vou dar um carro novo à minha mulher.

Joe Berardo também dá razão ao psiquiatra Miguel Xavier, director do Programa Nacional para a Saúde Mental, que diz que "dever dinheiro a alguém é um factor de risco para a saúde mental". Olhemos para Joe Berardo exactamente. Berardo fez-se milionário sob o alto patrocínio da Caixa Geral de Depósitos. Sei disto porque ele próprio me contou. A sua primeira poupança foi uma conta que a mãe lhe abriu na Caixa, em 1962, na Madeira, com dois mil escudos (dez euros), teria ele então 18 anos. Uma semente. Uma conta que se manteve aberta e que nunca parou de crescer. Um casamento frutuoso, posto que de conveniência. O saldo de Berardo na Caixa já ia aqui atrasado em mais de 280 milhões de euros, realmente uma fortuna, mas de dívida. Joe Berardo devia ao banco público mais de 280 milhões de euros, que se soubesse até àquele então, na sequência de empréstimos manhosos que lhe deram de mão beijada e que ele agora não consegue ou não lhe apetece pagar. À banca portuguesa em geral, o comendador Berardo deve quase mil milhões de euros. Uma batelada de massa de que eu nem faço ideia. E tudo começou com apenas dois contos. Parece ilusionismo, número de circo. É por isso que ele se ri tanto e faz pouco do País. Ele é o homem que conseguiu dar o golpe do baú à Caixa.
Por outro lado, dou valor ao Berardo. Ele deve aqueles camiões, navios e aviões todos cheios de dinheiro - só assim é que me oriento -, ri-se olimpicamente e é um homem rico. Eu não devo um cêntimo a ninguém, ando zangado com a boa disposição e sou um homem pobre - decerto ando doudo! Bem pregava frei Tomás: calotai, meus irmãos, calotai a bom calotar, e sereis felizes para sempre...


P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Abril de 2019. É. Há dois anos. De acordo com as notícias, Joe Berardo foi hoje detido por suspeitas de fraude à Caixa Geral de Depósitos, ao Novo Banco e ao BCP. B
urla agravada, administração danosa, fraude fiscal e branqueamento de capitais são os crimes apontados. No total, estima a Polícia Judiciária, o empresário madeirense terá causado prejuízos de quase mil milhões de euros.

Comecemos pelos gafanhotos

Quando fiz 21 anos comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveriam de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.

Eram assim os Comandos, para onde não fui voluntário, é preciso que se note. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que às vezes "as coisas correm mal"...
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche talvez marchassem melhor. E depois um golinho de água, por favor...

Naquele tempo eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro (isto anda tudo ligado) Juca Chaves e que, indo directamente aos finalmentes, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando.

P.S. -  Este texto é tão velho como o mestre de kung fu, mas também tão novo como as notícias. A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária anunciou ontem a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro. Cá está: eu, antes do tempo...

Aqui há gato 52

Foto Hernâni Von Doellinger

Trazei-me cá o martelo, caralho!

Pardelhas, Fafe. Festa de São Pedro. A Internet ainda estava no cu dos americanos, parece impossível mas não havia Facebook nem Twitter, o telemóvel chamava-se telefone, trabalhava a manivela e só se deslocava da mesinha de cabeceira para a cama, se o fio deixasse, e o e-mail chamava-se telegrama. A comunicação era boca a boca, como a respiração, as redes sociais iam num pé e vinham noutro. Mandavam-se recados, levavam-se "repostas" - assim se dizia, e eu gostava, na minha terra. Era ainda a  idade das trevas, posto que com automóveis e motorizadas. 
Mas havia altifalantes, e urgências são urgências. A meio do "Carrapito da Dona Aurora", que estava a correr tão bem, alguém corta o pio aos do Conjunto António Mafra, sopra asmaticamente no velho microfone Philips, "um, dois, um, dois, experiência", e, desassossegando a aldeia inteira, grita na maior das aflições:
- Atenção, muita atenção! Ó Silva, trazei-me cá o martelo, caralho...

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Janeiro de 2013.

Está bem, abelha

Foto Hernâni Von Doellinger

Insondáveis são

Quando tirou a última pedra do caminho, enterrou-se em lama até aos tornozelos.

P.S. - Acreditem em mim: hoje, 29 de Junho, é Dia Internacional da Lama.

Questões entre parênteses

Quando os parênteses lhe caíram na lama, substituiu-os por vírgulas. 

Uma mãozinha

Foto Hernâni Von Doellinger

Tudo bons rapazes

Cada vez que há eleições para papa, nos tempos modernos, sai um velhinho na rifa. Um cardeal velhinho. Compreende-se: é preciso pôr na cúpula da Igreja Católica alguém com experiência, com a sabedoria da longa vida que carrega sobre os ombros, não vá repetir-se a triste história do inconsciente Jesus Cristo, que tinha apenas 33 anos e resolveu morrer por nós todos, dando origem a isto tudo. E o cardeal velhinho tem de ter muitos doutoramentos em muitas universidades gregorianas, que é só uma, mas podia ser pelo menos três, como a Santíssima Trindade, não vá sentar-se lá na praticamente infalível cadeira um pescador como Pedro ou um funcionário das Finanças como Mateus, dois burgessos que certamente escangalhariam isto tudo.
E já muito facilita o Vaticano, quedando-se pelos simpáticos septuagenários ou octogenários. Basta pensar que, biblicamente, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu inesperadamente aos 969 anos.
(Evidentemente também há João XII, que chegou a papa aos 18 anos, dormia com as prostitutas do pai, teve relações sexuais com a própria mãe, castrou um dos seus cardeais, cegou outro, torturou quem lhe desprazia e acabou por morrer com uma valente marretada na cabeça, gentilmente oferecida pelo marido cornudo de uma das suas incontáveis amantes. Mas isso não é desculpa.)
Não sei se sabem: todos os católicos são elegíveis para papa. Basta-lhes serem, obviamente, baptizados, maiores de idade e homens, embora depois devam vestir saias. Isto é, eu posso ser papa, um sétimo de toda a população mundial pode ser papa, depois, na questão das saias, cada um seria para o lado que der.
Só que as eleições no Vaticano não são directas e universais. Votam apenas os cardeais, lacrados no chamado conclave, onde, nas horas mortas, contam anedotas picantes uns aos outros e fazem malha. E se votam apenas os cardeais (120 no máximo, "em nome" de cerca de 1272 milhões de almas), porque é que os velhinhos haveriam de escolher para patrão o Silva dos Plásticos, que, sendo embora uma pessoa estimável e comerciante respeitado, não lhes pertence de lado nenhum?
É! Aquilo é coisa entre padrinhos e afilhados. Como na máfia, Deus lhes perdoe...

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Junho de 2016, sob o título "Os rapazes do Vaticano". Hoje, 29 de Junho, é Dia do Papa.

Deixem o Espírito Santo em Paz

O Papa morre e a Igreja apressa-se a reunir em conclave para escolher o novo Papa. Velho. A Capela Sistina é preparada a todo o vapor e duas salamandras. Metidos lá dentro, fechados à chave, o lóbi italiano, o lóbi canadiano, o lóbi americano, o lóbi alemão, o lóbi austríaco, o lóbi francês, o lóbi brasileiro, o lóbi sul-americano, o lóbi africano, o lóbi africanista, o lóbi banqueiro, o lóbi dos velhos, o lóbi dos "novos", o lóbi "conservador", o lóbi "renovador", o lóbi do silêncio, o lóbi "garganta funda", o lóbi gay e outros insondáveis lóbis vão negociar o nome do sucessor do falecido. A feira do costume. No fim dizem que a culpa foi do Espírito Santo.

Dá-me a tua camisola

Meio-dia. Hora do Angelus dominical na Praça de São Pedro, quase completamente cheia. É uma das melhores casas da época. No meio da multidão de freirinhas, jovens padres, padres reformados, falsos padres, carteiristas, japoneses de máquinas fotográficas, polícias, tarados sexuais no roço, a claque ultra do Santos Futebol Clube, vendedores de raspadinhas benzidas, católicos mais ou menos indiferenciados e sérios, uma excursão de Oliveira de Azeméis e hippies retardatários, há uma cartolina que se agita no ar, em direcção à janela papal. Está escrito: "Francisco - Dá-me a tua camisola".

Interlúdio fotográfico 346

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Um guardanapo para a Selecção

Por volta de 1980, Mário Wilson era o seleccionador nacional e também treinador do Vitória de Guimarães, por onde passava pela segunda vez, se não me engano. No Inverno, para poupar o relvado, único, do velho e feiíssimo Municipal vimaranense, o Vitória ia às quartas ou quintas-feiras treinar a Fafe, fazendo o chamado jogo-treino com os da casa. Eu trabalhava em casa, na Associação Desportiva de Fafe, tratava dos papéis, de alguns inocentes papéis...
Mário Wilson era uma jóia de pessoa e foi um treinador sobretudo afectivo. Gostava de falar com os seus jogadores um a um, como em confissão mas passeando, colocando-lhes o braço paternal por cima dos ombros - vi muitas vezes.
Um dia, numa daquelas quartas ou quintas-feiras, o Senhor Wilson entrou-me no gabinete, que era por baixo das bancadas e por cima dos balneários, cumprimentou-me como se eu fosse alguém e pediu-me se podia usar o telefone para ligar à Federação. Eu teria para aí uns 21 ou 22 anos e "dei-lhe" autorização, armado em parvo como só naquela idade. Depois de conseguir resposta do lado de lá da linha, o Velho Capitão pigarreou, cofiou a barbicha, foi ao bolso do casacão de cabedal, rapou de um guardanapo de papel marcado com beiçadas de verde tinto, estendeu-o em cima da minha secretária, alisou-o o melhor que pôde e começou a ditar para Lisboa o que lá escrevera eventualmente ao almoço. Eram nomes, uma lista, a convocatória para a Selecção Nacional na campanha de apuramento falhado para o Europeu de 1980, em Itália. Exactamente: a Selecção de Portugal estava no guardanapo de Mário Wilson...

P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Junho de 2016.

Foi um ar que se lhe deu

Foto Hernâni Von Doellinger

Saindo do armário

Um dia ele saiu do armário e disse: - Mãe, gosto de mulheres.
 
P.S. - Hoje, 28 de Junho, é Dia Internacional do Orgulho LGBT.

A ordem dos factores

O pai: - Afinal como é que se chama esse teu namorado?
A filha: - Chama-se Mónica.
O pai: - Mónica?
A filha: - Mónica.
O pai: - Mónica, do género José da Silva Mónica?
A filha: - Não. Mónica, tipo Mónica da Silva José.

Maria já não vai com as outras

Enquanto Maria ia com as outras, bem ia. O pior foi quando foi com o outro, só para provar. Resultou grávida de seis meses e agora as outras já não a deixam ir.  

O cu e cinco tostões

Tinha aquela mania tola de dizer repetida e inopinadamente, como se fosse um mero portanto, "dava o cu e cinco tostões". Nunca lhe aceitaram o dinheiro.

Para os dois lados

Entre os pupilos do exército e as pupilas do senhor reitor, ele não sabia bem...

Bissexual

Era bissexual. Todos os dias. De manhã depois de acordar e à noite antes de dormir.

Não me lembro...

Deitou-se com o Lusco-Fusco e acordou com a Aurora. Era bastante liberal e realmente um bocado bêbada. 

Ataque à bomba

Disse que ia atacar à bomba, e foi. Anos e anos a fio. Dental. Hoje a bomba é a estação de metro da Trindade e ele era travesti.

Era realmente um bocado lésbico

Ele próprio admitia que era um bocado lésbico. Lésbico naquela parte que diz respeito a gostar de mulheres. Por isso não compreendia as lésbicas que gostam de mulheres que fazem tudo para parecerem homens...

Os louros a quem os merece

- Que injustiça - queixou-se o velho pederasta -, os louros deviam ser todos para mim...

Interlúdio fotográfico 345

Foto Hernâni Von Doellinger

A minha avó era uma santa, mas o Vaticano não sabe

A minha avó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza.
Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e pequerricha, ia a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar muitos anos, e eu não acredito.

P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Maio de 2014. O processo de beatificação de João Paulo II foi aberto pelo Vaticano no dia 28 de Junho de 2005.

Pim, pam, pum

Foto Hernâni Von Doellinger

As orelhas

As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é. As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se puxar as orelhas. Hoje em dia é proibido puxar as orelhas nas escolas, só se for aos professores. Os puxões de orelhas aos professores são gravados no telemóvel e mandados, com uma grande risota, para o YouTube. Das escolas saem cada vez mais orelhudos. E entram no YouTube.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque estão a dizer bem de nós; se for a esquerda, é porque nos estão a rogar na pele. Se arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros. As orelhas também deitam fumo sem fogo, pelo menos nos desenhos animados.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o músculo mais famoso do mundo à pala do Vasquinho da Anatomia. As orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação. Em tempos de crise como os que vivemos recomenda-se com molho-verde.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às orelhas. Há governantes que não são governantes porque não ouvem. Por exemplo: as orelhas dos alegados presidentes dos Estados Unidos da América e do Brasil são orelhas a fingir, orelhas de mercador. As orelhas do deputado Ventura, outro por exemplo, são orelhas de burro. Eu gosto muito de orelhas e tenho duas. De momento.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Maio de 2012. Hoje, 28 de Junho, é Dia Internacional do Piercing Corporal.

Só destes, tenho sete 153

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de junho de 2021

Quando o futebol não era para cátias vanessas

Os nomes interessam-me muito. "Diz-me o teu nome, dir-te-ei quem és" - acredito neste ancestral provérbio chinês que acabo agora mesmo de inventar, e não no outro, bem intencionado e de autor incerto, "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és". Millôr Fernandes explicava melhor do que eu o meu ponto de vista: "Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas". Estamos percebidos?
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.

(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)

Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?

Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Emídio Rafael, o Rui Pedro, o Nuno Henrique, o Mário Rui, o Rui Miguel, o Pedro Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o João Mário, o Nani, o Beto (por amor de Deus - o Beto!), o Rui Patrício, o Cristiano Ronaldo, os Rúbens, os Marcos, os Diogos, os Afonsos, os Salvadores, os Santiagos, os Bernardos, os Gonçalos, os Brunos, os Tomás. Enfim, cátias vanessas.

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Agosto de 2014.

Interlúdio fotográfico 344

Foto Hernâni Von Doellinger

Evasão

- Mais vale só do que mal acompanhado - disse o recluso n.º 14.112. E fugiu.

P.S. - Hoje, 27 de Junho, é Dia Nacional do Guarda Prisional.

À sombra

"Vá pela sombra!", disse o juiz. E ferrou-lhe com 25 anos.  

O denunciante

Denunciado por ter tossido em casa em tempo de pandemia, foi detido pela polícia, presente ao juiz e metido em prisão preventiva. O vizinho delator morreu de caganeira naquele mesmo dia.

Órgãos no mercado

Comprar órgãos no mercado, embora possa salvar vidas, é crime, dá dez anos de prisão. Concertinas, vá que não vá...

Interlúdio fotográfico 343

Foto Hernâni Von Doellinger

Rui Caeiro 4

A dois passos

Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso - esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno - estava-se bem.

Rui Caeiro

(Rui Caeiro nasceu no dia 27 de Junho de 1943. Morreu em 2019.)

Guimarães Rosa 10

Encorajamento

Meu desejo corre em ti com velas enfunadas…
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio:
ele não traz âncora…

"Magma", Guimarães Rosa

(Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)

Eu pagaio, tu pagaias, ele pagaia

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 26 de junho de 2021

Beber água pode ser fatal

"Uma turista morreu em Amsterdão por ter bebido muita água em pouco tempo, quando estava sob o efeito de drogas." - informava o JN. É o que eu estou farto de dizer, mas ninguém me liga: beber água é um perigo. Esta turista, por exemplo, estava na boa, na sua, normalmente, "sob o efeito de drogas", e morreu porque... bebeu "muito mais do que dois litros de água". A puta da água, esse vício! Portanto, drogue-se à vontade mas beba vodca, por amor de Deus! Sele a torneira da companhia, para sua segurança. O JN avisou. Muito obrigado, JN! 

P.S. - Hoje, 26 de Junho, é Dia Internacional de Luta Contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas.

Mais vale fracassar do que sucessar

Não conseguia lidar com a pressão do sucesso. Álcool, drogas, depressão, tentativas de suicídio. Com a pressão do fracasso lidava ele muito bem. 

Olha, mar, o passarinho

Foto Hernâni Von Doellinger

Entre átonas e tónicas, a rádio perde-se

Dizer que. Já tinham o Trófense, por causa de ser da Trofa, e agora inventaram os ávenses, derivado a serem das Aves. Os rapazes do desporto da Antena 1, que é praticamente a única rádio que eu ouço, e gosto, têm um problema, eventualmente uma disfunção, com a maneira de dizer palavras. Eles, cuja profissão é, fino modo, dizer palavras. Um destes dias ainda os escutarei a falarem dos fárenses, por serem de Faro, dos pôrtuenses por serem do Porto, dos brácarenses por serem de Braga, dos pácenses por serem de Paços de Ferreira ou, puxando a brasa à minha sardinha, dos fáfenses, por serem de Fafe.
É o falso dilema entre sílabas átonas e tónicas. Eu resolvo-o com gin.

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Gin Tónico.

Interlúdio fotográfico 342

Foto Hernâni Von Doellinger

Maria Velho da Costa 2

Mulheres e revolução

Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida azeda. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo. Elas lavam os lençóis e as camisas que hão-de suar-se outra vez. Elas esfregam o chão de joelhos com escova de piaçaba e sabão amarelo e correm com os insectos a que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos mercados e praças por mais barato. Elas contam centavos. Elas costuram e enfiam malhas em agulhas de pau com as lãs que hão-de manter no corpo o calor da comida que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de água à cinta e um molho de gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas desencardem o fundo dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez meias. Elas areiam o fogão com palha de aço. Elas calcorreiam a cidade a pé e à chuva porque naquele bairro os macacos são caros. Elas correm esbaforidas para não perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e abrem a porta com a mão vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas enterram o dedo mínimo na galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo de zinco. Elas lambem a ponta do fio de linha para virar a camisa. Elas enchem os pratos. Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a coberta da cama. Elas abrem-se para um homem cansado. Elas também dormem.
[...]

"Cravo", Maria Velho da Costa

(Maria Velho da Costa nasceu no dia 26 de Junho de 1938. Morreu em 2020.)

Vida de cão 548

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Aramis, o cão

O Aramis andava à solta no Parque da Cidade. Também por lá andavam os espreitas do costume, no miradouro do costume, equipados de perversão e binóculos mal disfarçados, à cata de parzinhos no marmelanço. Mas do que eu quero falar agora é do Aramis, um cão, bem bonito por sinal, de raça... grande, que se afastou da alçada da dona e resolveu começar a rondar-me primeiro, a ladrar-me depois, e a ameaçar abocanhar-me logo que lhe apetecesse.
Eu fiz o que pude, dadas as circunstâncias: acagacei-me até mais não, a bem dizer paralisei, ainda por cima passou-me pela cabeça que de repente se desemboscassem por detrás das árvores o Porthos, o Athos e até o d'Artagnan para ajudarem o Aramis e então é que eu me borrava todo. Uma vergonha.
Portanto era nisto que nós estávamos: eu ali à rasquíssima, nem para a frente nem para trás, e o estupor do cão (eu já disse que era bem bonito por sinal?) com a dentuça cada vez mais arreganhada e mais próxima dos meus ricos calcanhares. A dona bem chamava por ele, aflita, "Aramis, anda cá, Aramis, anda cá", foi assim que eu fiquei a saber o nome do animal, mas ele deixa-te estar que eu já te atendo.
"Desculpe, ele só quer brincar", aproximou-se de mim a dona, a ver se lhe punha a mão e é o pões. "Mas eu não, minha senhora", saiu-me numa vozinha de falsete e o coração quase que vinha atrás. Não consegui articular, mas eu tinha sérias dúvidas de que o cão estivesse informado de que só queria brincar.
Finalmente, num assomo de determinação e talvez desespero, a senhora gritou, dura, autoritária, "Aramis, anda já aqui à dona!", conferindo uma inflexão muito forte à palavra dona. E o cão acordeirou, deixou-se prender e levou um raspanete. Eu saí dali para fora logo que as minhas pernas me deixaram, dando graças a Deus por na verdade haver cães que conhecem o dono. A dona.
Agora, a minha ideia é esta: o Parque chega para todos, pessoas, cães e até outros animais mais ou menos selvagens, como, por exemplo, as bicicletas. Mas, tendo em vista uma convivência pacífica entre todas as espécies, impõe-se que alguém ande pela trela. Ou eles ou nós. A mim tanto me faz.

P.S. - Publicado originalmente no do 29 de Julho de 2011. O capitão dos Mosqueteiros d'Artagnan - que na realidade existiu, para além da ficção de Alexandre Dumas - morreu no dia 25 de Junho de 1673.

Ocasos de fogo 20

Foto Hernâni Von Doellinger

Vais ver quando eu chegar a casa!

Era uma mãe à moda antiga, pobre, viúva, severa e de mão lesta, e foi chamada à escola derivado ao filho do meio. Eram nove. Na escola ouviu o que não queria, enfunou, e ligou ao miúdo logo ali, à frente de quem de direito, para que soubessem: "Vais ver quando eu chegar a casa!", ameaçou cheia de nervos e até o telemóvel cor-de-rosa com florzinhas se assustou. O filho, que era cego, ficou todo contente.  

Deixei o cego a falar sozinho

Por Matosinhos anda um cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego ouve as notícias num transístor em voz alta e um destes dias, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imediata e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe debitando os números dos autocarros que se aproximavam da paragem, como se estivesse a "cantar o quino", tal qual se dizia em Fafe. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei... invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, sabeis que mais, não me arrependo!

P.S. - Publicado originalmente no dia 6 de Julho de 2015. A Associação Luiz Braille foi fundada no dia 25 de Junho de 1927.

Bico calado

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Barata 8

Canção dos quarenta anos

Poema, suspende a taça
pelos dias que vivi.
Espelho, diz-me em que jaça
mais fiel me refleti.
Quarenta anos correram
e neles também corri.
 
Quarenta anos, quarenta.
Quantos mais inda virão?
Morrerei hoje de infarto
ou amanhã de solidão?
Serei pasto da malária?
Serei presa do avião?
 
A morte engendra esperança.
A morte sabe fingir.
A morte apaga a lembrança
da morte que vai ferir.
E em cada instante que passa
a morte pode surgir.
 
Quem pode medir um homem?
Quem pode um homem julgar?
Um homem é terra de sonhos,
sonho é mundo a decifrar.
Naveguei ontem no vento,
hoje cavalgo no mar.
 
Hoje sou. Ontem não era.
Amanhã de quem serei?
Um homem é sempre segredos.
Por qual deles purgarei?
Dos meus netos, qual o neto
em que me repetirei?
 
Que virtudes foram minhas?
Que pecados confessar?
Que territórios de enganos
a meus filhos vou legar?
A quem passarei meu canto
quando meu canto passar?
Ah! Como a vida é ligeira!
Ah! Como o tempo deflui!
Esse espelho não mais fala
da criança que já fui.
Das minhas rugas ruindo
apenas um nome rui.
 
Quedê rede balançando?
Quedê peixinhos do mar?
Quedê figo da figueira
pro passarinho bicar?
E o anel que tu me deste
em que dedo foi parar?
 
Dezembro chama janeiro.
Fevereiro irá chamar?
Monte-Cristo se me visse
não iria acreditar.
Como está velho, diria
a donzela Dagmar.
 
Um homem cresce espalhando
o reino em que foi feliz.
Onde Athos? Porthos?
Onde o tímido Aramis?
Um homem cresce querendo
e cresce quando não quis.
 
Crescer é rima de vida,
mas também é de morrer.
Crescer é terna ferida
que só dói no entardecer.
Em cada raiz da morte
há sempre um verbo crescer.
 
E cresço: macho e poeta.
Subo em linha, volto em cor.
Cresço violentamente.
Cresço em rajadas de amor.
Cresço nos filhos crescendo.
Cresço depois que me for.
 
Cresço em tempo de eternidade,
cresço em luta, cresço em dor,
não fiz meu verso castrado
nem me rendo ao opressor.
Cresço no povo crescendo,
cresço depois que me for.
 
E cresço na aurora livre
galopando esse corcel.
Cresço no verso espumando
entre as linhas do papel.
Cresço rubro de esperança
na barba de Don Fidel.
 
Quarenta anos, quarenta.
E nem sequer percebi.
Quarenta anos correram
e neles também corri.
E nesses quarenta anos,
oitenta de amor por ti.

"Violão de Rua", Ruy Barata

(Ruy Barata nasceu no dia 25 de Junho de 1920. Morreu em 1990.)

Interlúdio fotográfico 341

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Os Sãos Joões

O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe O Percursor.
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico então. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. O assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.

No meu tempo de Fafe, quanto a santos populares, o São João era um hospital muito grande no Porto, felizmente com a camioneta da João Carlos Soares a passar-lhe à porta. Tínhamos, isso sim, o Santo António da minha rua, o São Pedro da Recta e creio que ainda frequentei o São Pedro da Granja. Quanto ao resto, deixe estar, que está bem.
O mais que se sabia do São João eram uns versinhos muito antigos que certamente pertencem ao cancioneiro fafense e era de norma cantar à mesa na noite de passagem de ano, quando já estavam todos mais para lá do que para cá. Assim fazíamos na nossa família. Insisto, para quem não é de Fafe: fafense deve ler-se e dizer-se fafénsse. E os versinhos contavam assim:

O São João, ó dlindlindlim,
tem um carneiro, ó dlandlandlam,
com dois guizos no pescoço.
E quando toca, ó dlindlindlim,
o guizo fino, ó dlandlandlam,
também toca o guizo grosso.

Interlúdio fotográfico 340

Foto Hernâni Von Doellinger

Lagostas de São João

Andei um ano inteiro a poupar para meiaduzinha de sardinhas de São João - mas não chegou. Pedi um empréstimo ao banco, para acrescentar - e nem assim. Que se segue: desisti das sardinhas e comprei trinta e seis quilos de lagosta americana, do Maine, que vem ainda viva de avião e sempre me saiu mais em conta... 

Interlúdio fotográfico 339

Foto Hernâni Von Doellinger

Manjeriquices

Como todos os anos, o meu manjerico de São João foi atacado pela lagarta, dezenas de lagartas sorrateiras e gordas. Como todos os anos, tratei do assunto deitando uma panela de água a ferver sobre o manjerico. Como todos os anos, as lagartas morreram todas. E o manjerico também, como todos os anos. Não percebo... 

Interlúdio fotográfico 338

Foto Hernâni Von Doellinger

Ciganos

Sou um bocado cigano. Sempre que posso, recuso-me a entrar em estabelecimentos que têm um sapo à porta. 

P.S. - Hoje, 24 de Junho, é Dia Nacional do Cigano.

O cigano e o sapo

Havia aquele cigano, espírito de contradição, que só entrava em estabelecimentos que tivessem um sapo de louça a servir de porteiro.

Caminho 902

Foto Hernâni Von Doellinger

José Luis Sucasas 5

A confesión do criado Ensión

[...] 
O tal Ensión abanou os brazos dun lado a outro catro ou cinco veces, coma se quixera gañar propulsión, e logo desapareceu da taberna dun chimpo. Ou iso crin ver. Igual fixo outra cousa que eu non vin. Estaba alí sentado enfronte miña na mesa, a un metro escaso dos meu nariz; e de socate esvaeceu coma zugado por unha forza descoñecida, incontrolable. Sentíame estraño, moi esgotado. Arrimeime ao mostrador para pagar, pero o taberneiro díxome que xa pagara o home que estaba comigo. "Pero cando?", ía preguntarlle, pero penseino mellor e botei porta fóra.
[...]

José Luis Sucasas, em Praza Pública

(José Luis Sucasas nasceu no dia 24 de Junho de 1959. Morreu em 2017.)

Pedro Oom 8

O homem bisado

Alegra-me ser todas as coisas e as sombras que elas projectam
ser a sombra dos teus seios e da tua boca
o criado de smoking branco que te agita os cabelos
para um cocktail estimulante e fresco
a mesa onde passo a ferro o teu corpo
as espádulas as coxas a curva macia dos joelhos
alegra-me ser o contorno da tua nuca e o binário motor dos teus braços
embora mais pequeno do que um corpúsculo celeste
sou os milhões de astros microrganismos estrelas
a rota de todos os navios perdidos
a angústia síntese de todos os suicidas
a forma de todos os animais conhecidos
o desenho rigoroso de toda a flora existente

Ontem em Paris hoje em Lisboa amanhã em Júpiter
caminho para a resolução de todos os problemas
sem a certeza de resolver qualquer deles
como se fosse uma máquina de somar parcelas
quatro vezes quatro oito vezes dez oitenta
sabe-me a vida ao que É
esta progressão assustadora de crocodilos bebendo limonada
Ontem fui a prostituta a quem paguei a noite
hoje serei talvez o inocente violentador frustrado
Sutmil é a cidade par aonde me evado todas as noites à aventura
e "os anéis de Saturno são a força centrífuga-centrípeta que me
agita os braços no espasmo amoroso"
a cabeça em Marte os pés na Terra
vindo "lá do fundo do horizonte lívido"

O comboio está na gare o comboio vai partir
apressemos o passo o momento é solene
somos o automóvel que sobe a avenida
a pulsação acelerada dos maquinismos
taxímetro de uma cidade de província
satélites de um satélite lunar
Tu és o aeroporto eu o avião que parte
e muito mais calmos entre éter e fogo
percorremos os sonhos de planeta em planeta desfolhando o futuro a flor sempre rara
e marcamos nos astros o nosso roteiro DEZ QUILÓMETROS

amanhã tirarei o curso de sonhador espacializado


Pedro Oom

(Pedro Oom nasceu no dia 24 de Junho de 1926. Morreu em 1974.) 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Deuses do Olimpo

Foto Hernâni Von Doellinger

Aos domingos de manhã eles lá estão e são os meus ídolos. Jogam à bola porque gostam, são amigos e compinchas, para além disso dá-lhes imenso jeito ganhar apetite para o almoço, Deus os farture. Jogam a sério, têm árbitro, capitães de equipa, minuto de silêncio, estão organizados, já vi assembleias gerais antes dos prélios e minis geladinhas ao intervalo. Há os da praia seca e, no quintal dos fundos, os da praia molhada. A paixão pelo futebol é a mesma, tremenda e pura. Olímpica. São amadores como quer dizer a palavra.
Eles são o meu Mundial, o meu Europeu, e jogam futebol na praia - não confundir com futebol de praia. Em Matosinhos, fora da época balnear. São regra geral gordos e não têm cortes de cabelo idiotas, se descontarmos os carecas. Aqui não há mialgias nem lombalgias, ditas de esforço, mas haverá se calhar diarreias e ataques de fígado, o que se compreende perfeitamente. Aqui não há hooligans nem claques "organizadas". Não há cláusulas de rescisão, mas há multas por atrasos ou faltas, provavelmente para serem gastas à mesa. Não há paineleiros nem considerações filosóficas, psicotácticas e tibiotársicas. Não há último terço do terreno nem quarto segredo de Fátima. Para o espectador, então, é um luxo: vê pelo menos seis jogos ao mesmo tempo e ao vivo, enquanto faz a caminhada pela marginal, e depois é só direccionar a cabeça para o campo certo quando ouve... "Gooolooo!!!"...
E isto, é preciso que se note, sem precisar de telecomando.

P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Fevereiro de 2014, sob o título "O futebol realmente". Hoje, 23 de Junho, celebra-se o Dia Olímpico.

Natação sincronizada

Foto Hernâni Von Doellinger

Um gesto nobre, um sorriso nobel

Uma vez estive à beira de um Prémio Nobel da Paz. Digo à beira, como se diz na minha terra, e quero dizer mesmo ao lado, ao pé, como se diz em Lisboa, quase ombro com ombro: eu e o bispo Ximenes Belo por acaso acamaradados na loja do Adão Oculista da portuense Rua de Santa Catarina. Conhecíamo-nos por telefone e (meu) dever de ofício, mas o bispo não sabia e eu, ainda que pareça o contrário, sou envergonhado para meter conversa. Hora de ponta, casa cheia. O bispo famoso à paisana. As pessoas também. Os funcionários não. As pessoas pediam "faça favor, senhor bispo, passe à minha frente", os funcionários pediam "faça o favor, senhor bispo, é só para levantar, não é?", mas o bispo, num sorriso bondoso, desarmante, dizia naquela voz de anjo, se os anjos tiverem voz, uma vez que não têm sexo, "não, muito obrigado, muito obrigado, eu espero pela minha vez." E esperou. Esperou. Sempre sorrindo.
Naquela loja passavam-se realmente coisas espantosas. Outra maré, há anos, uma senhora, via-se que pobre, posto que asseada, notoriamente viúva, rodeada de filhos, todos pequenos, comprava uns óculos para o seu mais velhinho. Pediu, triste e envergonhada, mas honesta, se podia pagar em prestações, "prestações baixinhas". Foram chamar o dono do estabelecimento, o Senhor Adão Pinho, que se inteirou rapidamente do assunto e, sem grande conversa, nem prestações nem meias prestações, resolveu num estalar de dedos que a senhora levasse os óculos de graça, assim, e não se fala mais nisso. "Toma nota aí: já estão pagos!", disse à funcionária, e desapareceu no etéreo nada de onde tinha aparecido milagrosamente quando invocado. Tudo feito à meia-voz, por meias-palavras, de uma forma discreta, quase invisível, isto que não saia daqui, mas eu estava lá. E sorri.
Desde aquele dia passei a olhar o Senhor Adão com outros olhos, o que não admira, porque fui aumentando ou diminuindo as dioptrias, já não sei muito bem. Percebi então que Adão também era um anjo, embora essa parte não conste da Bíblia. Depois do gesto que o bom comerciante teve para com aquela pobre mulher, se me dissessem que o Adão Oculista, para além das suas lojas, era bombeiro voluntário, dador de sangue, irmão da Misericórdia, visitador de prisões, ajudador hospitalar, cuidador gracioso de doentes e idosos, servita não remunerado no Santuário de Fátima, sócio do FC Porto e que à noite andava pelas ruas da cidade a distribuir medicamentos, roupa e comida aos sem-abrigo - palavra de honra, eu acreditava. E acredito.
Não me levo muito a sério nem me tenho em grande conta. Sorrio-me de mim. Sou imodesto acerca de muito poucas coisas a meu respeito, porventura apenas de uma: julgo que hoje sou uma pessoa melhor do que era aqui há dez ou quinze anos. E antes, não desfazendo, era uma boa besta. Nunca serei um anjo, como aparentemente Ximenes Belo e Adão Pinho, mas, a verdade é esta, aos dois devo, entre outros poucos, as minhas melhoras.

Evidentemente estive várias vezes à beira de um quase Nobel, mas isso já é encomenda pataqueira. Lembram-se de José Manuel Durão Barroso, o multinacional lobista que foi primeiro-ministro de Portugal e presidente da União Europeia? Pois bem: Ramos-Horta (co-Nobel com Dom Ximenes em 1996) lançou a candidatura de Durão Barroso ao Prémio Nobel da Paz de 2008. Quatro anos depois, o prémio foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: só faltou um bocadinho.

P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Fevereiro de 2020. Hoje, 23 de Junho, é Dia Internacional das Viúvas.

Marchar, marchar!

Foto Hernâni Von Doellinger

Os dias inúteis

Embirro solenemente com a terminologia manga-de-alpaca dos "dias úteis" e das "horas de expediente". A que propósito é que os nanocrânios da burocracia terreiro-paçal determinaram e mandaram publicar que os meus sábados, os meus domingos, os meus feriados e dias santos, as minhas férias, se as tivesse, ou as férias deles são dias, por assim dizer, imprestáveis para a Nação? Quem lhes deu semelhante poder?
Eu, que tenho a mania de ser antes pelo contrário, desobedeço-lhes com quanta força consigo e gozo como um perdido nos fins-de-semana e correlativos. São os meus dias mais úteis.
Depois, chateiam-me as "horas de expediente", expressão tão prestável ao duplo sentido e que sempre me deixou com a pulga atrás da orelha. A minha dúvida é apenas esta, segredada pela pulga: será que, das 9 às 17, nas Finanças, nas autarquias ou nos ministérios, o papel do funcionalismo passa por lançar mão de todos os truques e armadilhas possíveis e inimagináveis para nos infernizar a vida e sacar-nos tudo, até o cotão dos bolsos, a mando do Estado? Então mais vale ir lá bater à porta depois do fecho dos serviços. Pode ser que, sem a obrigação do expediente, sejamos enfim atendidos com honradez.
Acredito que não estou sozinho nesta minha embirração. E por isso hoje apelo a que todos me sigam na desobediência. Apelo à revolta. Não vamos sair à rua para partir montras e pilhar iPods ou atirar pedras às cabeças dos polícias, nem vamos sequer cagar à porta dos políticos, como se recomendaria, mas combinamos o seguinte: peguemos nestes quatro dias "inúteis" que temos pela frente a façamo-nos felizes como se o fim do mundo fosse para a semana. Façamo-nos felizes, antes que a felicidade pague imposto ou seja proibida por decreto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Agosto de 2011. Hoje, 23 de Junho, é Dia das Nações Unidas para o Serviço Público.