sexta-feira, 30 de abril de 2021

O último dos Bernardinos

Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Hoje, 30 de Abril, é Dia Internacional do Jazz.

Apontamento musical

Era um pequeno apontamento musical. Estava escrito num post-it.  

Segunda oportunidade

Foto Hernâni Von Doellinger

Alda do Espírito Santo 5

Em torno da minha baía

Em torno da minha baía
Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrentes
obre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia 
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições: 
HUMANIDADE.

"É Nosso o Solo Sagrado da Terra", Alda do Espírito Santo 

(Alda do Espírito Santo nasceu no dia 30 de Abril de 1926. Morreu em 2010.)

Amador Montenegro 6

Por qué canto

[...]
Deprendín á cantar ouvindo as tróulas,
As canciós d'as fiadas,
As notas compasadas
Que s'escoitan n-os vales e ribeiras
D'o célteco a Ia lá n-as primaveiras,
D'ese canto xinxelo e malencóneco,
Sempre igoal; pro dôcísemo y-harmóneco.

Deprendín á cantar lendo n-a hestórea
Os feitos asombrosos
De qu'os fillos de Suevia valerosos
Foron autores, asombrand'ô mundo;
Aqués feitos groreosos
Que fel o pobo arda n-a mamórea,
Y-os vellos trasmitindo
Van âs xeneraciós que veñen vindo.
[...]

"Muxenas", Amador Montenegro 

(Amador Montenegro nasceu no dia 30 de Abril de 1864. Morreu em 1932.)

Caminho 891

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 29 de abril de 2021

A menina dança?

- A menina dança?
- Não, muito obrigado.
- Não tem nada que agradecer.
- Mas eu faço questão.
- Coimbrã?
- Oliveira do Hospital, mais concretamente.

Almas gémeas

- A menina dança?
- Não!
- É como eu. Não acha que fomos feitos um para o outro?...

Em pontas

Foto Hernâni Von Doellinger

João Penha 7

O eterno feminino

Ninguém vive sem amor,
Neste mundo sublunar.
Cada pomba tem seu par,
Cada zagala um pastor.

O doirado pica-flor
Ama a rosa-de-toucar;
Enfim, na terra e no mar,
É Ele o rei, o senhor.

Pois que amar é lei sem metas,
Amemos, cantando aos ventos
As nossas musas dilectas.

Até os próprios jumentos
Têm, como nós os poetas,
Burras dos seus pensamentos.


"Canto do Cisne", João Penha

(João Penha nasceu no dia 29 de Abril de 1838. Morreu em 1919.)

Francisco Bandeira de Mello 5

O equilibrista

Tocávamos clarinete na corda bamba
subíamos às altas torres do Egito
passeávamos de pára-quedas
no sol sem fim dos dias de fogo
subíamos à capota do avião
por cima das nuvens
recitávamos poemas à lua
tocando nela.
 
Andávamos nos parapeitos dos edifícios
de um pé só na balaustrada dos abismos
não caíamos dos fios metálicos do circo
andando de cabeça para baixo
nem do alto da torre Eiffel correndo
sonâmbulo.
Só na vida é que não nos equilibrávamos.

Francisco Bandeira de Mello 

(Francisco Bandeira de Mello nasceu no dia 29 de Abril de 1936. Morreu em 2011.)

Também faço isto muito bem 548

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 28 de abril de 2021

O cara de selfie

No metro, direcção Senhor de Matosinhos-Fânzeres. Entro na estação Matosinhos Sul e o rapaz também. A carruagem está a rebentar pelas costuras, arranjo lugar sentado porque sou velho e momentaneamente aleijadinho, o rapaz fica de pé, encostado à porta. O rapaz, mais perto dos vinte do que dos quinze, vai ao bolso e saca do telemóvel (deve ter outro nome o aparelho, mas para mim é um telemóvel e já digo muito). Saca do telemóvel, dizia, eleva-o na mão direita bem acima da cabeça, aponta-o para a dita e, como se estivesse sozinho a fazer caretas ao espelho da casa de banho, veste de repente um sorriso de plástico que por acaso até lhe fica bastante mal, olha para o telemóvel, dispara, suponho, e volta à cara normal, como se não fosse nada. Um lado está resolvido. Agora o outro: o rapaz continua com o telemóvel na mão direita bem acima da cabeça, que revira para a esquerda num lamentável trejeito artístico, e, como se estivesse sozinho a fazer caretas ao espelho da casa de banho, veste outra vez e de repente um sorriso de plástico que por acaso até lhe fica bastante mal, olha para o telemóvel, dispara, suponho, e volta à cara normal, como se nada fosse. Feito extraordinário, de que tomo nota: o sorriso do rapaz é o exactamente o mesmo das duas vezes, o mesmíssimo, decalcado, sem tirar nem pôr, o mesmo sorriso da cara para fora, oco, palermóide, nanométrica réplica mimética um do outro, o mais profundo sorriso de cara de cu à paisana - posso garantir eu, que sei muito de sorrisos.
Penso então ali, respeitosamente: há que dar valor ao rapaz - para se atingir semelhante grau de perfeição, isto é preciso muito treino, muito ano, muita selfie!..

O rapaz saiu no Parque de Real, duas paragens acima, viagem de três minutos. Serviço feito, ala para casa, que se faz tarde! Nem tive tempo de lhe dar os parabéns.

P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Outubro de 2016. Hoje, 28 de Abril, é Dia Mundial do Sorriso. Que há quem diga que é na primeira sexta-feira de Outubro.

Sorrio-me por tudo e por nada

Gosto das escorregadelas em casca de banana. É humor de casca-grossa. Mas prefiro os trambolhões em pele de cereja - piada fina. A vida é uma comédia e há quem não saiba...

O homem-rã

O homem-rã apareceu à tona em câmara lenta e saiu do lago com toda a calma, perante o evidente embaraço do casal de cisnes que porteira o condomínio. Vestia um blusão de cabedal que dizia nas costas batalhão de sapadores bombeiros, bsb, passou por um bando de turistas japoneses acabadíssimos de descarregar no novo terminal de cruzeiros, sorriu para os flashes e continuou naquele andar cómico até ao bar do parque da cidade. Entrou no bar, saltou para cima de um banco, depois saltou para cima do balcão e mandou vir, com uma nota de cinco na mãozinha verde: - Coach!, coach!

Cada macaco no seu galho

"Em que ramo é que trabalhas?", perguntaram-lhe. E o macaco respondeu: "No de baixo, derivado às vertigens..."

P.S. - Hoje, 28 de Abril, é Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho e Dia Nacional de Prevenção e Segurança no Trabalho.

Intervenção siderúrgica

Submetido de urgência a uma intervenção siderúrgica, não sobreviveu. A língua portuguesa é deveras traiçoeira...

A invenção da sogra

Consta que os muçulmanos introduziram a nora em Portugal. Gostaria de saber: e quem terão sido os filhosdeputa que nos introduziram a sogra?

P.S. - Hoje, 28 de Abril, é Dia da Sogra. No Brasil.

Só destes, tenho sete 151

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 27 de abril de 2021

Os três três

E vai há tanto tempo, que até parece que nada mudou. Portugal era o país dos três efes: futebol, fado e Fátima. E dos três pês: pobres, pobres, pobres. E dos três esses: Salazar! Salazar! Salazar!...

Interlúdio fotográfico 297

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu avô era designer e não sabia

Já aqui contei que o meu avô da Bomba, apesar de quarteleiro dos Bombeiros de Fafe, nunca se apartou completamente do velho e honrado ofício de sapateiro com que se iniciara na vida. Enquanto pôde, num cantinho por baixo das escadas que subiam para "o salão" do quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro, ele manteve banca e fez, com desenho próprio, as sandálias e sapatos que calçavam a família. A família lá de casa dele, quero dizer, mulher e filhos, porque o meu avô não era de dar. E se dava, eram os bons-dias, mas pedia o troco e recibo com número de contribuinte.
Em todo o caso, fui semanticamente injusto quando chamei sapateiro ao meu avô da Bomba. Nestes tempos em que nem os cegos são cegos - são invisuais -, agora que já nem há mentirosos - mas inverdadeiros -, nos dias em que nem os bois são chamados pelos nomes - têm números -, chamar sapateiro ao meu avô da Bomba é praticamente um insulto, e estou muito arrependido.
Se escrevesse hoje, eu diria que o meu avô da Bomba era um mestre do artesanato, um artista do calfe, uma Joana Vasconcelos por antecipação, e fazia-lhe um museu; diria que era um criador de sapatos e dava-lhe um subsídio do QREN; diria que era um caso exemplar do empreendedorismo nacional e pendurava-lhe mais uma medalha no 10 de Junho; diria que era um designer de calçado e acompanhava-o à Feira de Milão. É isso, se escrevesse hoje, eu diria que o meu avô da Bomba era um designer de calçado.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Novembro de 2015. Hoje, 27 de Abril, é Dia Mundial do Design Gráfico, e foi o que se pôde arranjar...

Também faço isto muito bem 547

Foto Hernâni Von Doellinger

Cassiano Nunes 5

Espera um pouco
 
Não dês o nome de amor
ao que não passa de desejo.
Ideal é uma palavra branca demais
para o teu apetite de aposentadoria.
Procura ser exato
ao definir as coisas.
 
A minha morte não denomines de morte.
Nem a consideres definitiva.
Espera um pouco, amigo!
Espera um pouco
pela ressurreição.
 
"Prisioneiro do Arco-íris", Cassiano Nunes

(Cassiano Nunes nasceu no dia 27 de Abril de 1921. Morreu em 2007.)

É da biba! Olha a bibinha!

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 26 de abril de 2021

E o 25 de Abril?

- E o 25 de Abril?
- Está feito.
- E agora?
- Só para o ano...

Vida de cão 543

Foto Hernâni Von Doellinger

Caetano da Costa Alegre 5

Cantares santomenses

Branca a espuma e negra a rocha,
Qual mais constante há-de ser,
A espuma indo e voltando,
A rocha sem se mexer?
[...]

Caetano da Costa Alegre 

(Caetano da Costa Alegre nasceu no dia 26 de Abril de 1864. Morreu em 1890.)

Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 25 de abril de 2021

O mal do 25 de Abril

O mal do 25 de Abril é que amanhã é outra vez 28 de Maio. O ano inteiro. 

E será que vai a tempo?

Foto Hernâni Von Doellinger

O Homem-Bata

Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar para os outros, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros, via as febres (que eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre"), passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. O Sr. Pimenta dava também muito mal injecções. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, o Sr. Pimenta era uma homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não. E eu também não sabia a malícia das anedotas que contava. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica não gostava nada dele.

P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Outubro de 2014. Hoje, quarto domingo da Páscoa, é Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

Calimero

Foto Hernâni Von Doellinger

José Ángel Valente 7

Cerquei, cercache,
cercámolo teu corpo, o meu, o teu,
coma si foran só un soio corpo.
Cercámolo na noite.
Ergueuse á ialba a voz
do home que pregaba.
Terra allea e máis nosa, alén, no lonxe.
Ouvín a voz.
Baixei sobor teu corpo.
Abríuse, améndoa.
Baixei ó outo
de ti, subín ó fondo
Ouvón a voz na raia
do sol, no achegamento
e na inseparación, no eixo
do día e maila noite,
de ti e de min.
Fiquei, fun ti.
E ti ficache
coma ti es, pra sempre
acesa.

"Cántigas de Alén", José Ángel Valente 

(José Ángel Valente nasceu no dia 25 de Abril de 1919. Morreu em 2000.)

Evaristo Martelo Paumán 5

A misíon dos bardos

[...]
Compren bágoas e queixume,
de neno ou virxen doída,
ós corazóns.
C’os tiráns a sangre e lume
loitar, mentres ferve a vida,
eso ós varóns.
Gallegos d’onte, Odiseas
de tempos que hoxe quixeres,
patria ¿onde van?
Teus fillos, non ás frameas
hoxe ós ollos, cal mulleres
levan a man.
Erguervos, homes do liño,
¡vergonza! que ó menos sente,
que é pouco ter.
Para defende-lo niño
inda o carrizo é valente,
sabe morrer.
[...]

"Landras e Bayas", Evaristo Martelo Paumán

(Evaristo Martelo Paumán nasceu no dia 25 de Abril de 1853. Morreu em 1928.)

Caminho 890

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 24 de abril de 2021

25 de Abril e coisa e tal

Vinte e cinco de Abril sempre, nem que seja só às vezes. 

Os bois e os boys

Os bois são chamados pelos nomes. Os boys, pelos números. 

P.S. - Hoje, 24 de Abril, é Dia do Boi. No Brasil.

Vai pela sombra, Portugal...

Foto Hernâni Von Doellinger


Orides Fontela 5

Rebeca

A moça de cântaro e seu
gesto essencial: dar água.

"Transposição", Orides Fontela

(Orides Fontela nasceu no dia 24 de Abril de 1940. Morreu em 1998.) 

Benito Barros 4

Antes de sermos sereno

[...]
Depois,
Seremos apenas relento.
Da imaginação estrumada de angústia
florescem esquisitices.

 "Ah, se a morte chegasse!
como a água da bica
- lentamente, suavemente -
a encher a cisterna."

Meu caro, não vês a cisterna meã?
 
"Ah, se morte viesse!
como os pingos da chuva
- abrupta, intermitente -
a molhar o telhado."
 
Meu caro, não vês o telhado húmido?
[...]

"Réquiem para o Infinito", Benito Barros 

(Benito Barros nasceu no dia 24 de Abril de 1957. Morreu em 2010.)

À sombra da tabuleta

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de abril de 2021

O livro

Chegou à última página com o coração dilacerado entre a euforia e o desalento. Que mundo extraordinário, o livro. Quinhentas e sessenta e três páginas cheias de mistério, de sonho, de imaginação, de fantasia, certamente romance, amores e desamores, aventuras e desventuras, acção, suspense, final inesperado. Por outro lado, pensou, acariciando-lhe vagarosamente a lombada, num gemido mal disfarçado de suspiro: - Ah, se eu soubesse ler!...

P.S. - Hoje, 23 de Abril, é Dia Mundial do Livro.

Os livros

Gosto de afagar os livros que leio. Aliso-os. Cheiro-os. Protejo-os. Guardo-os com mil cuidados. E deixei de emprestá-los! 

Dos livros

Isto só lá vai à lombada. É dos livros.  

Livraria

Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água-benta que não encontrou, genuflexou e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Vida de cão 542

Foto Hernâni Von Doellinger

Baltasar Lopes 5

Ressaca

Venham todas as vozes, todos os ruídos e todos os gritos
venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos;
venham todas as coisas que não consigo ver na superfície da sociedade dos homens;
venham todas as areias, lodos, fragmentos de rocha
que a sonda recolhe nos oceanos navegáveis;
venham os sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras
venha a resposta captada por aqueles que dispõem de aparelhos detetores apropriados;
volte tudo ao ponto de partida,
e venham as odes dos poetas,
casem-se os poetas com a respiração do mundo;
venham todos de braço dado na ronda dos pecadores,
que as criaturas se façam criadores
venha tudo o que sinto que é verdade
além do círculo embaciado da vidraça...
Eu estarei de mãos postas, à espera do tesouro que me vem na onda do mar...
A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doloridos,
mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores
na linha de todas as batalhas.

Baltasar Lopes

(Baltasar Lopes, que também assinava Osvaldo Alcântara, nasceu no dia 23 de Abril de 1907. Morreu em 1989.)

Jorge de Lima 7

Ó grande
país
Tu aderiste também.
Teus urubus são inquietados
Nos teus ares altíssimos pelos aviões.
Nos teus céus os anjos já não podem solfejar,
Sufocados de fumaça, importunados pelo pessoal
Do Limbo.

Tu vais ficar irremediavelmente
Toda a América
Irremediavelmente gêmeo,
Irremediavelmente comum.


Jorge de Lima

(Jorge de Lima nasceu no dia 23 de Abril de 1893. Morreu em 1953.)

Valentín Paz-Andrade 9

Cantarela do camiñante 
 
As bruxas de Vozqueimado
deixan as vasoiras fóra,
para tornar enmeigado
ao que camiña a deshora.
Lobo na sombra enfoulado
que cando aos vultos oubeas
pos o silencio esgazado,
feito farrapos de teas.

Valentín Paz-Andrade

(Valentín Paz-Andrade nasceu no dia 23 de Abril de 1898. Morreu em 1987.)

Caminho 889

Foto Hernâni Von Doellinger


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Pegada ecológica

Tinha uma pegada deveras ecológica. Fosse aonde fosse, ia em pezinhos de lã.

P.S. - Hoje, 22 de Abril, é Dia Mundial da Terra. E é também Dia Nacional do Património Geológico.

Ligeiramente chateada nos pólos

Agora é que a Terra está ligeiramente chateada nos pólos. Derivado ao aquecimento global e respectivos degelos, que são sempre desagradáveis. E isto é científico. 

Ocasos de fogo 19

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Duarte de Carvalho 4

A gravação do rosto

Na superfície branca do deserto
na atmosfera ocre das distâncias
no verde breve da chuva de Novembro
deixei gravado meu rosto
minha mão
minha vontade e meu esperma;
prendi aos montes os gestos de entrega
cumpri as trajectórias do encontro
gravei nas águas a fúria da conquista
da devolução do amor.

Os calcários e os granitos desta terra
foram por mim pesados.
Dei-lhes afagos
leves olhares
insónias longas
impacientes esperas.

"Chão de Oferta", Ruy Duarte de Carvalho

(Ruy Duarte de Carvalho nasceu no dia 22 de Abril de 1941. Morreu em 2010.)

Caminho 888

Foto Hernâni Von Doellinger

Victoriano Taibo 7

Brua o mar!

A flor do inverno é de neve, o azul do ceo, embazado,
ña Mai Terra aterecida ten un canto amargurado;
Brúa o mar! As ardentías escachan-se nas rompentes,
e os cons varudos agachan as súas cristas trementes;
Xeme o salgueiro dolente sintindo o beixo do xío,
e un alongado lamento sobre do leito do río;
Brua o mar! As furibundas olas, en inxente traza,
erguen-se outas e soberbas nunha espantosa ameaza.
A forteza do carballo arripía-se ca friaxe,
nos cumios ispidos prende a tristura do paisaxe;
Brúa o mar! Cada bruído é unha cega imprecación,
cada ola que se desfai, un berro de maldición;
Pola terra andan as almas a padecer e a chorar;
mas nas rías e nas furnas, cons e barras, brúa o mar;
Brua o mar! Doente, tolo, con pavorosa tolemia,
a inmensidade é unha moura e horripilante blasfemia.
Luitadores!
A luz do lóstrego aluma
a rúa pr'onde camiña o noso esforzo lanzal:
sexan nosas almas brancas como o craror da alba escuma,
que o nordés revolve airado nas mourenzas do peiral.

"Abrente", Victoriano Taibo

(Victoriano Taibo nasceu no dia 22 de Abril de 1885. Morreu em 1966.)

Multifunções 2

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 21 de abril de 2021

O filósofo Carrilho e o carralho do mediatismo

Manuel Maria Carrilho. A notícia dizia: "O antigo ministro da Cultura tem dado várias entrevistas ao longo dos últimos dias. No sábado, disse não saber como lidar com o mediatismo em torno da separação de Bárbara Guimarães." Eu ensino-o, Senhor Professor: deixe de dar entrevistas.

P.S. - Publicado no dia 4 de Novembro de 2013, e tudo continua na mesma. Já agora: Bárbara Guimarães faz hoje 48 anos.

Vida de cão 541

Foto Hernâni Von Doellinger

Hilda Hilst 10

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.

"Do Desejo", Hilda Hilst

(Hilda Hilst nasceu no dia 21 de Abril de 1930. Morreu em 2004.)

Quem me quer?

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 20 de abril de 2021

O último pedido

Vinham o padre, o presidente da câmara, o chefe da polícia, o sargento da GNR, o Emplastro, o comandante dos bombeiros, a fanfarra dos escuteiros, uma gaiola com pombas brancas e o director da prisão. Parecia uma procissão. O carcereiro, que vinha também, desatarraxou a porta da cela e o director da prisão, solene, com voz de padre, informou o condenado: - Tens direito a um último pedido. O condenado pensou um bocado e disse: - Pode ser o "Pica do 7", do António Zambujo?...

P.S. - Hoje, 20 de Abril, é Dia do Disco de Vinil. Pelo menos no Brasil... 

Vida de cão 540

Foto Hernâni Von Doellinger

Rosa Lobato de Faria 9

A culpa é toda sua. Não me diga que não, que eu bem lhe leio o subtexto erótico na forma dançada como você passa por ele, inundando-o do seu charme, do seu perfume e da sua respiração rumorejante. Faz que não vê, mas vê. Faz que não quer, mas quer. O homem fica tonto e você gosta. Traça a perna diante dele daquela forma insólita, mostrando dessous que deixaram de o ser, tilinta coisinhas de metal quando lhe dá o perfil e o recorte esplêndido da sua pequena orelha e o botão da blusa, não me diga que o perdeu, anda desabotoada três dedos abaixo do ponto de viragem, viragem da cabeça dele, entenda-se.

"Pedra Rara - Dispersos e Inéditos", Rosa Lobato de Faria 

(Rosa Lobato de Faria nasceu no dia 20 de Abril de 1932. Morreu em 2010.)

O tamanho importa (e exporta)

Foto Hernâni Von Doellinger

Moro mesmo em frente ao mar, se for para a varanda e me puser de lado. É o que costumo dizer: na minha rua passa o mar. No meu quintal estacionam navios de passeio mediterranicamente atlânticos, paquetes carregados, descarregados e outra vez carregados de turistas rotundos e supersónicos que conseguem turistar o Norte de Portugal inteiro em menos de oito horas. Há quem chame ao meu quintal, por inveja, Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões. Mas não: é o meu quintal!
Noutro dia estacionou-me ali em baixo o Costa Pacifica, o da fotografia. São mais de 290 metros de navio para 3.780 passageiros. Os paquetes que me batem regularmente à porta têm-me dado que pensar, suscitam-me reflexões de pequena e média profundidade que aqui humildemente partilho com os meus queridos leitores. E daquela vez vieram-me à cabeça os cus. Os cus que os cruzeiros descarregam e recarregam.
Cu de turista não é brincadeira, já repararam? É traseiro de bitola larga e se for cu americano então ocupa o mundo inteiro, incluindo o México e o Brasil, menos a Alemanha e a Rússia. Até parece que para se ser turista - turista encartado - é preciso ter um cu daqueles. E o cu alemão e o próprio cu russo também para lá caminham, não querem ficar atrás. O que diz tudo a respeito dos cus.
Imagino que sejam muito ricos os camones com que me cruzo nas bordas do Porto de Leixões - eles a saírem todos cheios de good morning e eu, de passagem, "desculpem lá a shit de dog na sola da sandália, é good luck, com os cumprimentos de Matosinhos City
". Tão turistas e tão prendados de cu, têm de ser muito ricos. Engordam e viajam porque podem. Se calhar são todos reformados da administração do Millennium BCP ou do BES mas não querem que se saiba.
Os turistas. Chegam e parece-me sempre um congresso de cus com sala de espera no Passeio Atlântico, que se vê à rasca para aguentar semelhante pesadelo. Toneladas e toneladas de bagagem extra em traseiros colossais e gingões mesmo à frente do meu nariz e que até naufragam tuque-tuques. Confesso: é um espectáculo que não pára de maravilhar-me. Olho para os cus e olho para o barco, e só me apetece elogiar o génio humano, os avanços da ciência, os milagres da indústria, a arte e o engenho dos modernos fazedores de navios, supremos desafiadores das leis da física. Fascina-me aquilo que não consigo compreender. Para os cus e para o barco, olho. Olho para o barco e penso: como é que aquilo não vai ao fundo com tanto cu descomedido lá enfiado?


P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2012. Hoje, 20 de Abril, é Dia do Turista, há quem diga. Derivado à pandemia, Matosinhos está actualmente sem barcos, sem turistas e portanto sem cus. Sobram os alojamentos locais e os galegos, que são da casa.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

E se?

E se o 25 de Abril fosse a 25 de Maio e o 1.º de Maio fosse no dia 1 de Abril? Alguém nos tinha enganado, não é? 

A bisculeta

A bisculeta é um utensílio com pelo menos quatro rodas: a roda da frente, a roda de trás, a roda pedaleira e o pinhão. Vulgarmente conhecida como velocípede sem motor ou bicicleta, há também quem lhe chame automóvel derivado exactamente àquilo das quatro rodas. 

P.S. - Hoje, 19 de Abril, é Dia Mundial da Bicicleta. Que também é a 3 de Junho...

Bicicletai, meninada!

Foto Hernâni Von Doellinger

Dois pesos e duas medidas

Tinha dois pesos e duas medidas. Um peso na balança do quarto de dormir e outro peso na balança do quarto de banho, que lhe subtraía graciosamente cerca de quilo e meio. Quanto às medidas, a primeira foi desfazer-se da balança do quarto de dormir.

P.S. - Os padrões protótipos de sistema métrico decimal, o metro e o quilograma, entraram legalmente em Portugal no dia 19 de Abril de 1911.

O aferidor de pesos e medidas

- Esta noite choveu a cântaros!
- A almudes, se faz favor...

A medida do homem

Os homens não se medem aos palmos. Medem-se aos furcos.

Crimes de peso

Era um contumaz praticante de crimes de peso. Até que foi apanhado. Os fiscais apreenderam-lhe a balança e o tribunal aplicou-lhe uma coima de mil euros. 

E se o Verão vier...

Foto Hernâni Von Doellinger

E. M. de Melo e Castro 2

Pernas

se olho as tuas pernas digo duas pernas
sem pensar mais nas pernas que nas pregas
mas sinto as tuas pernas duas pernas
mais do que sinto as pregas como pregas
e nem pregas nem pregos nem pregões
me podem impedir de pensar pernas
quando as duas e tuas pernas pões
na posição das diagonais eternas
e entre as pernas que tu usas tuas
e a única palavra que as nomeia
e o volume de que faço nuas
surge a imagem súbita do prego
que se prega nos olhos e que fura
no duro centro aonde a imagem dura


"Sim... Sim!", E. M. de Melo e Castro

(E. M. de Melo e Castro nasceu no dia 19 de Abril de 1932. Morreu em 2020.)

Manuel Bandeira 9

"Carnaval", Manuel Bandeira 

(Manuel Bandeira nasceu no dia 19 de Abril de 1886. Morreu em 1968.)

Tanta rolha assassinada

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 18 de abril de 2021

Sei de sítios como quem sabe de ninhos

Sou devoto dos prazeres da mesa. Gosto da liturgia de uma boa refeição, em família ou com amigos, gosto de comer, gosto do que é bom, e sei o que é bom. Também sei fazer. Sou um apaixonado pela boa e honesta cozinha portuguesa. Gosto da cozinha portuguesa tal qual ela é, na sua pureza original: tradicional, apurada, robusta, variada, generosa. Um bom prato, uma especialidade daquelas de trás da orelha, é capaz de me fazer andar duzentos ou trezentos quilómetros pelo prazer de o degustar. Sei de sítios como quem sabe de ninhos. Sei de sítios que não conto a ninguém, nem sob tortura, e se a tortura não for a da fome.
Enquanto posso (e posso cada vez menos, como a maioria dos portugueses), vou a esses sítios onde já há muito eu e a minha mulher somos tratados como amigos ou família, e com mimos especiais, mas tenho que admitir que é sobretudo a comida que lá me leva. Vou pelo gosto, é este o meu parâmetro de aferição e escolha fundamental.
Mas respeito quem se deixa seduzir por outras variáveis gastronómicas ou paragastronómicas, como, por exemplo, essa coisa tão vaga ou talvez não como é "o serviço" ou "o atendimento".
Um velho compincha doutras vidas mas também da santa trincadeira - nas imortais palavras de mestre Aquilino Ribeiro, colocadas na boca de um abade, pois claro - contou-me que estava um destes dias numa bela jantarada, num grupo de gente boa e interessante, quando um dos convivas alvitrou um próximo repasto a realizar em determinado restaurante, que "tem um excelente serviço"...
O meu amigo, que é um brincalhão mas o outro não sabia, perguntou, com matreirice:
- Excelente serviço, pois... Mas o que é que se come? O que é que é lá muito bom? Uns bolinhos de bacalhau..., uns ossinhos da suã?...
- Quer-se dizer, não sei, tem muita coisa, nada assim de especial, mas o atendimento é óptimo... - colocou-se à defesa o homem da ideia.
- Está bem, mas eu não como serviço, o atendimento não me enche a barriga - insistiu o meu amigo e voltou a insistir, perante o cada vez maior embaraço de quem já se tinha arrependido de ter dado apenas uma sugestão e do resto do pessoal à volta da mesa.
Tudo acabou depois na risota, quando todos perceberam que o meu amigo afinal estava na tanga, e até tiveram sorte porque desta vez, tenho a certeza, ele não arrumou a questão com uma expressão que lhe é muito cara e que, neste contexto, seria algo do género:
- O serviço? Dá-me com o serviço nos

tomates aux gésiers de lapin. Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o ministro da Finanças conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de ontem e seja feliz.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Setembro de 2011. O ministro das Finanças era então o vagaroso e lastimável Vítor Gaspar. Hoje é Dia Internacional dos Monumentos e Sítios
. Sei também de monumentos, mas gosto mais dos sítios que sei e que de momento não posso frequentar. Uma infelizmência! Ontem ao almoço estive vou e não vou para montar um piquenique só para mim ali em baixo no areal da praia, só para sair, mas percebi a tempo o triste espectáculo que sou a comer com máscara...

Verde que te quero verde

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Frederico Schmidt 5

Canto da madrugada

Avancei pela noite. Abri os braços e recebi a aurora pequenina.
Chorava ainda. Suas lágrimas desceram sobre meu rosto.
Veio um perfume forte de flores molhadas,
Renovaram-se as vozes dos galos pelas campinas úmidas.
Lenhadores dormem nos casebres frios.
Estão nascendo flores misteriosas
Estão crescendo grandes almas nas sombras da noite.
Porque há um canto que sai da noite e vem acordar a aurora adormecida!

Augusto Frederico Schmidt

(Augusto Frederico Schmidt nasceu no dia 18 de Abril de 1906. Morreu em 1965.) 

Monteiro Lobato 7

Ao luar

Como reconhecer a flor da cerejeira?
Deixando-nos guiar pelo seu perfume.

Céu de outono e coração de mulher
se assemelham;
Em uma noite um e outro
Mudam sete vezes.

Monteiro Lobato

(Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de Abril de 1882. Morreu em 1948.)

Antero de Quental 8

Idílio

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

"Sonetos", Antero de Quental

(Antero de Quental nasceu no dia 18 de Abril de 1842. Morreu em 1891.)  

Miguel Suárez Abel 3

Pero tranquis, ante todo moita calma, que non me vou reducir a chorar. O único que ocorre é que se cadra chímpanme fóra do insti. Ese é o problema. Moi probablemente a partir de mañá non poderei volver a ese colexio. Xa sei, xa sei que tampouco é ningunha desgracia abandonar unha porcallada de instituto, pero... ¿que fai unha rapaza coma min, sen cumprir aínda os dezasete, se non está matriculada nalgún centro de estudio? (Iso é o que lle escoito dicir a tododiós.)
Ocorreu todo por unha historia do máis boba. (Perdoade un momentiño: ¿Que vos parece se poño unha cinta de Scorpions?; é que a min alucínanme. E ímonos tratar de colegas, tío, que aquí non se está a enganar a ninguén.) Resulta, como xa vos dixen, que desde o curso pasado as cousas marchaban mal entre Anxo e eu. Anxo é un chalado. Un destes profesores taladrados cos que te atopas en calquera colexio. Abreviando: que está zumbadísimo. Pero por se non chegase, é cabrón.

"Selva Negra", Miguel Suárez Abel 

(Miguel Suárez Abel nasceu em 1952. Morreu no dia 18 de Abril de 2017.)

Caminho 887

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 17 de abril de 2021

O circo somos nós

Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, inventados à la minuta, nomes de fazer sonhar. Nomes à antiga: Arena, Brasil, Cardinali, Circolândia, Chen, Cristal, Dallas, Dragon, Eddy, Flic Flac, Império, Leunam, Luftman, Mariani, Mundial, Nederland, Nery Brothers, Oceanika, Soledad, Romero, Torralvo ou Twister. Ou Circo Royal, com Pierre Ivanoff e os seus leões da Abissínia, ou o meu melhor circo do mundo, Circo Merito, que ia a Fafe todos os anos, sem animais acima de cão, mas com um incrível número de transmissão de pensamento operado pelo senhor Merito em pessoa e sua partenaire, e sobretudo uns palhaços como nunca mais ri na minha vida e que contavam sempre a anedota de que a nossa era a única terra à face da mesma mas com maiúscula onde dormiam dezoito numa cama: o meu avô da Bomba, que era o 17, mais a minha avó. O meu avô afinava e eu achava um piadão.
O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960, que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Almeida, o Circo Brochado, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Santos. O Circo Celso. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional?
Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos - de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Freamunde - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
Só o carro com altifalantes sobressaltando as pacatas ruas da vila antiga já era uma festa. "Hoje grátis às damas, damas grátis!", prometia-se ambiguamente na véspera da despedida. O circo era o melhor faz-de-conta de todos os tempos! O famoso Pierre Ivanoff chamava-se Pedro Piloña Reina e era um espanhol de Valência nascido em Casablanca, Marrocos. Na jaula, com os leões, vestia de tribuno romano que eu sabia dos filmes - e ficou-me até hoje. Tinha eu se calhar sete anos quando o Pedro, aliás Pierre, desafiou o meu pai, saxofonista, a fazer-se ao mundo a bordo da orquestra do Circo Royal, mas o meu pai não foi. Foi para mim um desgosto muito grande, que já me via palhaço, a morar na rulote, a faltar à escola e a rasgar completamente as meias de rede da Mirita...

O sítio do circo em Fafe era na Feira Velha. A Câmara, quando se tornou mercearia para não ficar atrás das outras câmaras, meteu lá carros à hora e é pena.

Por outro lado: O circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, caímos que nem tordos sem capacete.

P.S. - Texto publicado originalmente no dia 17 de Novembro de 2017. Não sei como estão agora os circos com isto da pandemia. Se calhar já não há circos. Por estes dias tristes e desesperançados, socráticos, os circos serão talvez um luxo e uma redundância. Um anacronismo. A magia e o sonho são delito. A felicidade parece proibida por decreto. A gargalhada, se for popular, é considerada um desperdício. Carlos Drummond de Andrade dizia: "Vou ao circo para me sentir em casa com o mundo". E Ferreira Gullar, no poema "Improviso para a moça do circo", do livro "Na Vertigem do Dia", lembrava a infância e contava: "é pouca a vida que a cidade oferece, até que aparece o circo". Quanto à repetição: hoje, terceiro sábado de Abril, é Dia Mundial do Circo.