domingo, 15 de novembro de 2020

O gesto é tudo. E nós não sabemos nada.

A Zorelhas
As orelhas. As orelhas são muito úteis. As orelhas servem para segurar o lápis, o cigarro e o raminho de alfádega, que já ninguém sabe o que é. As orelhas centram muito bem a cabeça e estão no sítio certo para se puxar as orelhas.
As orelhas produzem cera, cotão e pêlos, materiais altamente combustíveis. As orelhas ardem: se for a direita, é porque alguém está a dizer bem de nós; se for a esquerda, é porque alguém nos está a rogar na pele. Se arderem as duas ao mesmo tempo, o melhor é chamar os bombeiros.
As orelhas doem e quando doem chamam-se ouvidos e muitos nomes feios. As orelhas são vizinhas de porta do esternocleidomastóideo, que é o músculo mais famoso do mundo, à pala do Vasquinho da Anatomia. As orelhas, em casos extremos, servem também para a nossa alimentação.
Às vezes as orelhas dão jeito para ouvir. Ouvir é bom e deve-se às orelhas. Eu gosto muito de orelhas e tenho duas.

Ou há moralidade...
Não havia quem lho tirasse da ideia: se um cego é invisual, um surdo é insonoro.

Não agridam mais o invisual!
Nas minha terra, os cegos eram "ceguinhos". Agora que penso nisso, acho que era um tratamento rústico mas carinhoso, de respeito, carinho, que contraponta com a inexplicável designação de "invisuais", esse moderno eufemismo que tem tanto de pateta como de desnecessário.

Só visto
Tinha um ouvido que só visto!

Os apaixonantes
Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda filarmónica, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.

Facebookando
- Comporte-se. Baixe lá essas maiúsculas, que eu não sou surdo...

Eu e o meu barbeiro
Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os colhões, espreito-me aos espelhos, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos...
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Ainda por cima, os barbeiros trabalham de navalha em punho e nós estamos de mãos atadas...

Finura
Era de uma educação requintada. Dizia: "Tem progenitor que é invisual". Dizia: "Em terra de invisuais, quem possui um olho é monarca". Dizia: "O pior invisual é aquele que se recusa a vislumbrar". Dizia: "A palavras loucas, pavilhões auriculares insonoros".
 
P.S. - Hoje, 15 de Novembro, é Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa. Pensei mais uma vez: e se a escola - para além de Português, Francês e Inglês, de Matemática e Geografia, de Cidadania e Educação Moral e Religiosa - nos ensinasse também a todos Linguagem Gestual?...

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