segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O velho (i.e., eu) e o mar

Delícias do mar
Areia macia e morna, água, o sal da terra, cheiro a argaço, sol quando Deus quer, a brisa nas ventas, o falar das ondas, o silêncio do horizonte a ganhar de vista, madrugadas de pés molhados, ocasos de fogo, Apúlia, um fino bem tirado, pescadores, peixeiras, surfistas, parassurfistas, ciclistas e todos os tipos de nudistas, a Foz, Matosinhos, a ver navios, os números do Porto de Leixões, camarão da costa, gambas no Peixoto de Fafe que já não é, cracas em São Mateus, alcatra de peixe no Boca Negra, lapas em casa do Victor e da Ana, ilha Terceira, ilha Terceira, ilha Terceira, ecos de Nemésio, mexilhões de vinagreta, masoquistas esturricando agosto e areando os entrefolhos, amêijoas à Bulhão Pato no portinho de Âncora, o bacalhau assado na brasa do Senhor Álvaro em Valença, o bacalhau assado no forno pela minha mãe, o bacalhau de quarto da minha avó de Basto, os bolinhos de bacalhau da minha avó da Bomba, a punheta de bacalhau do meu cunhado Álvaro, as trutas "do Coura" do querido amigo Vilaça Pinto, que, palavra de honra, era como se fossem marítimas, polvo de molho-verde, as lulas recheadas da minha sogra, as sardinhas da Dona Dina, navalhas na chapa, arroz de tomate com petinga, ou com jaquinzinhos, ou arroz de grelos com, ou arroz de feijão com, mas malandro, malandro, malandro, ou, supra-sumo dos supra-sumos, o arroz de feijão vermelho com grelos e bacalhau frito da minha cunhada Isabel, fanecas, biqueirão, marmotinha de rabo na boca, filetes de peixe-galo, a raia frita no Salta o Muro aqui à porta, a lagosta na ilha de São Jorge comida à ganância e à moina, as percebes na ilha do Sal, as bandejas nas rias galegas, carapaus grelhados no quintal do meu sogro, ostras de Setúbal degustadas em Bordéus, a mastodôntica cabeça de pescada que vou cozer para o jantar, os tremoços da Marrequinha da Recta. Isto são delícias do mar. Outra coisa não:
Fitas de nastro tingidas de cor-de-rosa gomitado, cortadas em palitos empacotados em vácuo e refrigerados e vendidos à babuge nos supermercados não são, por mais que lhes chamem, delícias do mar! Não, não e não!

Sete mares e mais um
Mar Asmo
Mar Telo
Mar Celo

Mar Mita
Mar Mota
Mar Sapo
Mar Fim

Mar Ibela e Seu Rola-Rola

E tenho o mar
E tenho o mar. Não sei o que seria da minha quarentena, que já vai em quase três anos, se não tivesse o mar todos os dias. Seguramente estaria ainda mais avariado da cabeça e do resto. O mar, gosto de o ouvir, gosto de lhe sentir o silêncio, gosto de o ver, gosto de o cheirar, mesmo que cheire mal, gosto de o pensar, gosto de o adivinhar. Gosto do mar com sol, com chuva, com nevoeiro, com vento, sem vento, gosto do mar com todos como o bacalhau. Gosto do mar azul, às vezes verde e sobretudo azul e branco. Gosto do mar manso, gosto do mar bravo. Gosto do mar salgado e ainda que fosse insosso. Gosto do mar. E tenho sorte, na minha rua passa o mar. Tenho o mar se for à varanda, de caras. Escuto-o no quarto de dormir, e sossega-me a alma, ajuda-me ao sono cada vez mais difícil. Continuo a passear-lhe as bordas todas todas as manhãzinhas, cada vez mais cedo, cada vez mais cedo, porque preciso do resto do dia para tomar conta e porque o povo é burro, como se diz em Fafe, e cuida que esta merda já passou, e não passou nada, está cada vez pior, tal como eu avisei.

Os oceanos são cinco, todos ao virar da esquina
Os oceanos são cinco: Atlântico, Pacífico, Índico, Glacial Árctico e Glacial Antárctico ou Austral. E têm um restaurante aqui ao virar da esquina e com garagem "Reservada a clientes" ao lado da minha porta. O restaurante chama-se muito apropriadamente Restaurante 5 Oceanos. Que se segue: hoje é Dia Nacional do Mar.  

Guarda-redes
Velho pescador aposentado, navegava em terra remendando redes e enxotando gaivotas. 

Gosto de correntes de ar
As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises.
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda é-me de toda a conveniência tal qual está. E não a tapo, pelo menos enquanto a falta de ar for apenas opcional.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, gostava de fumar a minha cachimbada e de beber o meu CRF "em balão previamente aquecido", que já não fumo e bissextamente bebo, gosto de ver passar navios. Condenaram-me a isso, a ver navios, mas eu gosto. Sou um gajo cheio de sorte: moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado.

O meu barbeiro e os barcos
O meu barbeiro atacou-me à traição: falou-me de barcos. Tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa: barcos. Nós sabíamos que, portismos à parte, tínhamos também isto em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo de tropa, escanhoador-mor a bordo do navio-escola Sagres; e eu há mais de quatro mil dias que sou contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado).

Kafka à beira-mar
Entro no metro. Viagem curta, de Matosinhos Sul até à Senhora da Hora, apenas quinze minutos e mudança de linha para Vila do Conde. Sento-me num daqueles bancos frente com frente, éramos quatro, dois de cada lado e, se fosse futebol, a bola seria redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte, cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe - sempre a destoar, eu.   

P.S. - Hoje, 16 de Novembro, é Dia Nacional do Mar, com efeito.

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