quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Um gesto nobre, um sorriso nobel

Uma vez estive à beira de um Prémio Nobel da Paz. Digo à beira, como se diz na minha terra, e quero dizer mesmo ao lado, ao pé, como se diz em Lisboa, quase ombro com ombro: eu e o bispo Ximenes Belo por acaso acamaradados na loja do Adão Oculista da portuense Rua de Santa Catarina. Conhecíamo-nos por telefone e (meu) dever de ofício, mas o bispo não sabia e eu, ainda que pareça o contrário, sou envergonhado para meter conversa. Hora de ponta, casa cheia. O bispo famoso à paisana. As pessoas também. Os funcionários não. As pessoas pediam "faça favor, senhor bispo, passe à minha frente", os funcionários pediam "faça o favor, senhor bispo, é só para levantar, não é?", mas o bispo, num sorriso bondoso, desarmante, dizia naquela voz de anjo, se os anjos tiverem voz, uma vez que não têm sexo, "não, muito obrigado, muito obrigado, eu espero pela minha vez." E esperou. Esperou. Sempre sorrindo.
Naquela loja passavam-se realmente coisas espantosas. Outra maré, há anos, uma senhora, via-se que pobre, posto que asseada, notoriamente viúva, rodeada de filhos, todos pequenos, comprava uns óculos para o seu mais velhinho. Pediu, triste e envergonhada, mas honesta, se podia pagar em prestações, "prestações baixinhas". Foram chamar o dono do estabelecimento, o Senhor Adão Pinho, que se inteirou rapidamente do assunto e, sem grande conversa, nem prestações nem meias prestações, resolveu num estalar de dedos que a senhora levasse os óculos de graça, assim, e não se fala mais nisso. "Toma nota aí: já estão pagos!", disse à funcionária, e desapareceu no etéreo nada de onde tinha aparecido milagrosamente quando invocado. Tudo feito à meia-voz, por meias-palavras, de uma forma discreta, quase invisível, isto que não saia daqui, mas eu estava lá. E sorri.
Desde aquele dia passei a olhar o Senhor Adão com outros olhos, o que não admira, porque fui aumentando ou diminuindo as dioptrias, já não sei muito bem. Percebi então que Adão também era um anjo, embora essa parte não conste da Bíblia. Depois do gesto que o bom comerciante teve para com aquela pobre mulher, se me dissessem que o Adão Oculista, para além das suas lojas, era bombeiro voluntário, dador de sangue, irmão da Misericórdia, visitador de prisões, ajudador hospitalar, cuidador gracioso de doentes e idosos, servita não remunerado no Santuário de Fátima, sócio do FC Porto e que à noite andava pelas ruas da cidade a distribuir medicamentos, roupa e comida aos sem-abrigo - palavra de honra, eu acreditava. E acredito.
Não me levo muito a sério nem me tenho em grande conta. Sorrio-me de mim. Sou imodesto acerca de muito poucas coisas a meu respeito, porventura apenas de uma: julgo que hoje sou uma pessoa melhor do que era aqui há dez ou quinze anos. E antes, não desfazendo, era uma boa besta. Nunca serei um anjo, como aparentemente Ximenes Belo e Adão Pinho, mas, a verdade é esta, aos dois devo, entre outros poucos, as minhas melhoras.

Evidentemente estive várias vezes à beira de um quase Nobel, mas isso já é encomenda pataqueira. Lembram-se de José Manuel Durão Barroso, o multinacional lobista que foi primeiro-ministro de Portugal e presidente da União Europeia? Pois bem: Ramos-Horta (co-Nobel com Dom Ximenes em 1996) lançou a candidatura de Durão Barroso ao Prémio Nobel da Paz de 2008. Quatro anos depois, o prémio foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: só faltou um bocadinho.

P.S. - Publicado originalmente no passado dia 3 de Fevereiro. Alfred Nobel - químico, engenheiro, fabricante de armamentos, inventor e criador em testamento do prémio que herdou o seu nome - nasceu no dia 21 de Outubro de 1833.

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