quarta-feira, 1 de abril de 2020

Pode o peido ser mentira?

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando o flato era uma acto cultural
Parece que não, mas hoje é Dia dos Enganos. Dia das Mentiras. Com isto da política, das redes sociais, dos jornais à rasca e das televisões sensacionalistas, que são todas, todos os dias são dia das mentiras, que agora se dizem em estrangeiro fake news, e quase passa despercebida a velhinha efeméride residente do primeiro de Abril. E olhem:
O Dia dos Enganos era celebrado em Fafe com pompa e circunstância. Era uma tradição, um acto manifestamente cultural. Na minha terra, naquele tempo, festas assim familiares como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Pelo Entrudo, se me dão licença, eram os peidos-engarrafados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que eu sei lá mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje em dia será mais fino dizer. Durante o resto do ano, no Cinema, só peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria. Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço. Mas o Dia dos Enganos, que foi ao que vim, e ia-me perdendo: no Dia dos Enganos saíamos para a rua, ali no Santo Velho, estrategicamente colocados entre os tascos do Paredes e do Zé Manco, e dizíamos a quem passava: - Ó senhor, olhe o que lhe caiu!...
- Foi um peido que me fugiu... - levávamos logo de resposta, que também fazia parte, e ficávamos todos contentes.
É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia...


O peido é uma insofismável verdade da vida, tal como a morte e dois mais dois serem quatro, e quem disser o contrário é néscio. Ou mentiroso. Ou néscio e mentiroso. Ou mentiroso e néscio. E infeliz.
Infelizes, sim, os que nunca ouviram o Moisés a peidar-se pelo soleno da noite, ali para os lados da Feira das Galinhas, hoje parece-me que parque de estacionamento e Praceta Egas Moniz. Aquilo é que era um artista, um verdadeiro predestinado. O Moisés. Os peidos do Moisés, impõe-se que aqui se diga, eram poderosos como pragas, abriam mares, incendiavam sarças, escreviam lei na pedra, abanavam os alicerces da Igreja Nova, mesmo em frente, Deus nos perdoe. Os peidos do Moisés seriam hoje considerados e explorados e exportados como energia alternativa. Mas também eram mansos, melodiosos, trinados, sin-co-pa-dos, contidos, meditabundos, quase confidenciais. O Moisés solfista trabalhava, com efeito, em vários registos, um dos quais, de execução particularmente exigente, mezzo piano, chamava-se "rasgar chita" e costumava encerrar o concerto, com mais dois ou três encores. (O Moisés aceitava pedidos.) Os peidos do Moisés eram um tremendo êxito, embora infelizmente nunca tenha gravado e apenas actuasse para plateias restritas e altamente seleccionadas. Cumpre-me finalmente fazer notar que o sintetizador, tal como actualmente o conhecemos, ainda não tinha sido inventado...

Sinceramente 
"Mente-me, que eu gosto", disse ela. "Por isso é que te amo tanto", disse ele.

Arreganha a tacha!
Era um mentiroso compulsivo. E mentia com quantos dentes tinha. Exactamente trinta e dois simetricamente divididos por duas falsas gengivas enfiadas de tacha arreganhada num copo de água choca em cima da mesinha-de-cabeceira.

Tectos falsos genuínos
- Estes tectos são mesmo falsos?
- Como judas...

Eu seja ceguinho!, disse o cego
Na política não há mentirosos. Há inverdadeiros. Porque os políticos não dizem mentiras - declaram inverdades. Porque os políticos não mentem - faltam à verdade. Mas justificam a falta. Porque, na política, a verdade é alternativa tal qual a corrente pode ser alternada. Porque na política moderna há narrativas e há desenhos, quer-se dizer: há ficção, fingimento, dissimulação, invenção, sugestão, engodo, engano. Mentira, não.

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