segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A sesta do meu avô da Bomba

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu ainda não sabia que aquela "meia horinha" se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, era a Bomba.
Naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Sr. Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Sr. Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Sr. Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Sr. Ferreira era um homem bom, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e sem emprego, o Sr. Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida na mão tremente.
O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até vinha mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Sr. Ferreira do Hospital. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.

(Publicado originalmente no dia 8 de Outubro de 2011. Hoje é dia 17 e pronto.)

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